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Eliane Brum e Daniela Arbex debatem em “pré” do Festival da Mantiqueira

por Fernanda Miranda, 9 de abril de 2014
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Daniela estava de férias quando leu no Tribuna de Minas, jornal onde trabalha faz alguns anos, uma notícia que causou espanto. Na manchete estava escrito que três crianças de 9, 10 e 11 anos haviam se envolvido em um assalto em Juiz de Fora, Minas Gerais. A resposta da população indignada foi rápida: além de xingarem os menores infratores, os moradores da cidade também pediram a punição imediata dos envolvidos. “Mas como assim?”, pensou Daniela, perplexa diante da insensibilidade com os menores. Logo que voltou do recesso, a repórter decidiu entrar a fundo nessa história e investigar quem eram esses meninos. Algum tempo depois estava sendo publicada sua reportagem “Crime abrevia infância e põe sociedade à prova“, que mostra o outro lado da mesma questão, revelando a intolerância e a criminalização da infância pela sociedade brasileira.

“O caso emblemático revela uma tragédia social: a morte da infância. O fato de garotos estarem à frente de ações de violência é preocupante. Pior ainda é ver crianças pobres, sem amor e sem limites, serem alçadas ao posto de bandidos contumazes. Para especialistas, uma sociedade que tem medo de suas crianças e protege-se contra elas ao invés de ampará-las avança em direção ao passado de barbárie”, argumentou no texto.

Depois da publicação, Daniela percebeu que suas palavras, ao menos, tinham causado uma mudança positiva. Alguns daqueles que haviam hostilizado os meninos, agora se humanizavam com suas histórias. “Isso é o que gosto de fazer, mudar o olhar das pessoas e transformar as histórias”, comentou.

O episódio foi narrado por Daniela na noite de terça feira, dia 1º, durante o “esquenta” do Festival da Mantiqueira, um encontro de literatura que foi realizado em São Francisco Xavier e região no último final de semana. O papo com Daniela foi um “esquenta” porque a organização do evento decidiu fazer um “pré” em São Paulo para aqueles que não puderam comparecer ao festival, no qual eu me incluo. O encontro foi realizado no teatro Sérgio Cardoso, região central da cidade. E olha, que belíssimo “pré”. Além da talentosíssima Daniela, estava na mesa de debate a repórter, escritora e documentarista Eliane Brum.

IMG_8504Daniela Arbex

O tema proposto pelo festival foi “As margens de um país”, revelando as reportagens feitas pelas jornalistas que tratam de histórias de pessoas “invisíveis”, que estão fora do campo de visão da mídia tradicional. “Fiz minha escolha em contar os desacontecimentos. A história de pessoas que fazem história, mas não são contadas pela história. E quem não é contado? Os pobres, os loucos, os negros, os índios, os ribeirinhos, os quilombolas”, argumentou sabiamente Brum.

É muito interessante o exercício de observar pessoalmente alguém que você conhece somente através das palavras. Até então, eu conhecia muito bem a Eliane e a Daniela pelas palavras. E as admirava extremamente por isso. Meu primeiro “contato” com Eliane Brum foi no meu primeiro ano de faculdade, em 2009, quando meu professor de jornalismo insistiu que nós, os alunos, deveríamos ler “O Olho da Rua”, uma coletânea de reportagens de Eliane. E depois disso eu nunca mais esqueci porque ela comentou uma vez que muitas vezes, em suas reportagens, esteve “diante de analfabetos que fazem literatura pela boca”. Ela disse isso, entre outros motivos, porque em uma de suas andanças pelo Brasil, relatada em uma reportagem do livro, ela conta:

“Encarapitadas em barcos ou tateando caminhos com os pés, a índia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda são guias de uma viagem por mistérios antigos. Cruzam com Tereza e as parteiras indígenas do Oiapóque. Unidas todas elas pela trama de nascimentos inscritos na palma da mão. “Pegar menino é ter paciência”, recita a caripuna Maria dos Santos Maciel, a Dorica, a mais velha parteira do Amapá. Aos 96 anos, mais de 2 mil índios desembarcaram no mundo pelas suas mãos pequenas, quase de criança. Dorica – avó, mãe, madrinha de centenas de filhos de pegação – nem mesmo gostaria de possuir o dom. “O dom é assim, nasce com a gente. E não se pode dizer não”, explica. “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo.” 

Nas pequenas delicadezas que se vê no duro cotidiano, muitas pessoas fazem sim literatura pela boca. As pessoas falam, elas criam, elas são, elas querem que sua existência seja contada, que a importância de suas histórias sejam registradas. Elas querem ser contadas pela história, como diz Brum. O que diferencia um seleto grupo de jornalistas — no qual deve-se incluir Eliane e Daniela — de outros, é que poucos desses profissionais têm um diferencial que deveria ser obrigação: eles ouvem. Eles escutam. Com todo o peito, sem preconceitos, sem julgamentos. Um dos motivos pelo qual — acredito — Eliane e Daniela são grandes profissionais e grandes pessoas é que elas são grandes “escutadeiras”.

IMG_8503O mediador do debate e Eliane Brum

No “pré” do Festival da Mantiqueira, Eliane contou uma história que talvez possa ilustrar bem seu dom em escutar. Ela narrou uma reportagem que fez sobre a pedofilia — e sobre isso ela diz: “os monstros têm o que dizer”. O assunto foi abordado em suas reportagens mais de uma vez. Quando assinava uma coluna na ÉPOCA, escreveu o texto “Pedófilo é gente?“, que diz:

“Em 1997, percorri o Rio Grande do Sul para fazer uma grande reportagem sobre abuso sexual infantil. Eu não queria entrevistar apenas as vítimas, queria escutar também os abusadores. Alguns na cadeia, outros seguindo a vida nas ruas. Nunca me recuperei desta reportagem. Por causa dos horrores que ouvi – e vi. Mas principalmente por causa da quantidade e da intensidade da dor. Eu esperava o sofrimento das vítimas. Nada me preparou para o sofrimento dos ‘monstros'”. 

“Pedófilos não são monstros, como a maioria de nós preferiria. São gente. E muitos deles – não todos – sofrem pelos atos que cometeram. E preferiam não ser o que são”.

Eliane costuma falar que para fazer uma reportagem é preciso ir longe, “mas longe na gente mesmo”, e eu gosto muito disso. E aprendo muito com isso. E sou muito grata por ter encontrado na minha trajetória de vida e de estudante universitária dois exemplos como Eliane e Daniela. Se eu já as admirava, passei a admirá-las ainda mais.

Minha amiga e colega de Não Só o Gato, Marina Ribeiro, publicou esses dias uma frase no Facebook que me fez lembrar dessas duas grandes jornalistas. Não sei exatamente o porquê, mas gostaria de terminar o texto de hoje com essa frase.

“It is both a blessing / And a curse / To feel everything / So very deeply”.

Fernanda Miranda

Recém-formada em jornalismo e editora do Não Só o Gato. Ama história em quadrinhos, os textos da jornalista Eliane Brum, as trilhas sonoras dos filmes do Woody Allen e azeitonas.

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