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Série Sincretismo – Parte II: Catolicismo

por Luiz Pecora, 1 de setembro de 2014
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Quando comecei a série, prometi a mim mesmo que não entrevistaria sacerdotes, mas fiéis, com o intuito de mostrar a espiritualidade do ponto de vista mais pessoal e menos institucional. Mas como promessas estão aí para ser quebradas (ainda mais autopromessas), já no segundo texto resolvi abrir uma exceção. Falar de sincretismo no Brasil é também falar de Catolicismo. Afinal, é em cima da imposição religiosa da Igreja Católica que as crenças de diferentes origens se adaptaram e mesclaram. Mas é difícil falar de Catolicismo sem ficar no óbvio. Afinal, a religião é a dominante no país e todos temos uma boa noção da linha de pensamento de um católico. Ou temos?

Foi conhecendo o Alvaci, frei franciscano, que achei uma boa maneira de conversar disso sem falar mais do mesmo. O frei logo me chamou a atenção pela forma aberta e direta como se apresentou, nada daquele padre tradicional que temos em mente, e pudemos conversar como dois amigos que se juntam para tomar um café e bater um papo. Me contou de como veio parar em São Paulo, de como gosta de andar de bike por aí e que adora a diversidade cultural e as muitas atividades que rolam na cidade. Falei sobre o Não Só o Gato e essa série, e ele topou participar da entrevista já emendando que acredita no ecumenismo como forma de abordar a religiosidade.

Dando exemplo da hospitalidade franciscana, Alvaci me convidou para tomar um café na casa da Ordem, um prédio antigo e discreto na Rua Riachuelo, atrás da Igreja que fica no Largo São Francisco, e depois do famoso Porão da Faculdade de Direito do Largo – “sempre tem bagunça, toda semana os estudantes tiram nosso sono”, os freis brincam (tive que admitir que já contribui um tanto para o sono ruim dos sacerdotes).

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Não Só o Gato: Conta pra gente um pouco da sua trajetória. Como você decidiu seguir sua vida na religião e porque entrou pra Ordem de São Francisco?

Alvaci: Eu venho de um Estado, Santa Catarina, que tem uma cultura católica muito forte, e de uma família com raiz católica muito forte, então desde pequeno fui aprendendo sobre a fé e a religião, educado nesse modelo de Igreja, sempre participando dessa vida com a família. Quando eu tinha lá pelos 8, 9 anos, eu senti que eu podia servir a Igreja ou ser alguma coisa dentro da Igreja, e foi que deu a vontade de ser padre. Fui me encaminhando e com 13 anos já havia entrado no seminário.

NSG: É bem cedo…

Alvaci: Sim, foi bem cedo. Com 13 anos você não tem noção de nada praticamente, da vida, de religião, de Deus… eu fui aprendendo tudo isso lá dentro. Entrei num seminário de diocesanos, mas lá dentro eu pensava que podia dar algo a mais, para mim mesmo e para os outros. E foi assim que me deparei com a história de São Francisco de Assis, que é apaixonante. Quando você lê, tu quer fazer igual porque ele foi um jovem completo naquilo que fez, e conseguiu fazer de uma forma totalmente diferente. Isso pode soar como clichê hoje, mas naquela cabeça de menino de 14 anos eu pensava que podia ser assim, que eu podia ser completo dedicando minha vida pelos outros. E aí foi, continuei os estudos até ser ordenado…

NSG: Desde sempre você teve a ideia de ser padre? Imagino como deve ser difícil tomar essa decisão com 10 anos!

Alvaci: Pois é. Eu nunca pensei numa coisa diferente. Nunca passou pela minha cabeça a vontade de ser outra coisa. Não queria ser jogador de futebol, não queria ser caminhoneiro, por mais que o pessoal zoasse na escola, na família. Imagina, tímido como eu era, podia ter me recolhido, mas não. E mesmo depois do seminário, tantos saíram e foram seguir todo tipo de profissão mas na minha cabeça nunca passou uma ideia diferente dessa.

NSG: Pode parecer um pouco trivial falar disso porque vivemos num país católico e todos sabemos as linhas gerais da religião católica. Mas numa perspectiva mais pessoal, qual a sua ideia sobre religiosidade, sobre o que é Deus, sobre espiritualidade?

Alvaci: Religião é sempre um lugar onde a gente se completa como ser humano. Então todas as religiões têm esse objetivo: nos completar como ser humano, nos fazer ir além daquilo que somos como pessoa. Todas as religiões têm vontade de dar resposta para aquilo que não podemos responder. Tudo aquilo que faz a gente ser melhor, enxergar o mundo melhor, enxergar as outras pessoas melhor, é o objetivo da religião. Religião é religar o ser humano ao sagrado, estamos sempre nesse processo. Mas ela nunca é algo desvinculado daqui, da Terra. Eu, particularmente, não gosto desses discursos todos, de outras religiões e da nossa também, que nos afasta demais da Terra. Jesus Cristo foi alguém que fez o máximo para que o mundo fosse melhor aqui, no mundo que a gente está vivendo, com as coisas que estamos vivendo, com as pessoas que estamos vivendo. Se a gente fica apenas numa esfera transcendental, a gente não percebe o mundo que está ao redor.

NSG: Isso tem a ver com o que conversamos outro dia sobre esse contraste entre quem vê a religião de uma perspectiva mais humana, de um lado, outras que adotam um viés mais ortodoxo e até fundamentalista…

Alvaci: Eu acho que a Igreja vem de uma crise muito forte, e eu falo a partir de dentro. Se percebeu que tem que haver uma mudança. Foi estratégico, claro, mas eu acho que também tem uma inspiração. Quer dizer, só se está relembrando a Igreja Católica daquilo que ela sempre deveria ter sido. Mas também não dá para se iludir que a mudança acontece de uma só vez. É como um transatlântico, que para fazer uma volta demora muito: até mudar toda a visão perspectiva, opinião das pessoas, demora. Por isso existem grupos divididos, pessoas a favores e contra, gente que gosta e gente que não gosta. Para mudar uma estrutura tão antiga é demorado, mas a gente acredita que as novas gerações já têm uma visão diferente.

A gente já foi minoria, o grupo dos cristãos já foi um grupo minoritário até virar a religião do Império Romano e virar maioria. Agora, aos poucos vai se recolhendo e pode ser que volte a ser minoria de novo. E precisa pensar como reaprender o Evangelho, a falar de Jesus Cristo de outra forma… que encante as pessoas. Que não seja mais por imposição, ou obrigação, ou por nascimento, mas que seja uma escolha. A religião tem que ser mais humana, tem que ser próxima das pessoas porque foi o que Jesus Cristo fez. Era alguém que enxergava o ser humano, a dor, a alegria das pessoas. Isso a gente perdeu com o tempo. Hoje a gente vê grupos, multidões, mas a gente precisa enxergar pessoas. Aí a gente volta à essência do cristianismo. O ser humano é igual desde as cavernas. Muita coisa evoluiu externamente, mas por dentro a gente continua igual. Precisa de toque, precisa de carinho, precisa de acolhida. O mais simples, o mais trivial.

NSG: Como o mote da série é sincretismo, eu preciso perguntar como você lida com outras religiões, e a mensagem de outras religiões. Talvez para a Igreja seja mais significativo, já que é a principal religião do país e é um país com muito sincretismo… Como que você enxerga isso?

Alvaci: Eu respeito toda a forma de crença, de se religar e encontrar o espaço do sagrado dentro de si. Todas as formas de religião são válidas, e todo tipo de fundamentalismo é perigoso. Quando uma pessoa procura uma religião, qualquer que seja, está procurando uma forma de se completar, de achar respostas que talvez ela não encontrou em outras religiões. Não é um mercado onde seleciona o que quer, mas se ela não completa essa essência dentro de uma religião, procura outra. Por muito tempo a Igreja achou que era detentora da verdade…existe aquela frase “fora da Igreja Católica não existe salvação”. Hoje em dia, cada vez mais, isso é questionado…alguém que nunca ouviu falar de Jesus Cristo, essa pessoa vai para onde? Então muita coisa vem mudando, com a tentativa das religiões conversarem entre si para achar o ponto comum. Eu gosto do diálogo e do contato com gente de outras religiões porque isso enriquece muito. No Brasil a gente tem muito isso, e acontece de forma natural. Temos essa herança cultural, pelo passado dos escravos que trouxeram suas crenças, e pela imposição que sofreram de outra religião acabaram misturando sem problema. Colocar o seu culto numa devoção de outra religião e fazer com que isso seja uma forma de oração é muito bonito.

NSG: Essa visão ecumênica, tem algo a ver com a sua tese de que Jesus não tinha religião?

Alvaci: Minha tese de conclusão de curso da Teologia foi justamente sobre Jesus Cristo como um homem que não teve religião. Todo tipo de “ismo” acaba deturpando a ideia inicial de uma religião. Jesus Cristo dizia “amai-vos uns aos outros”, criticava as religiões da época, então não tinha religião… a religião surgiu depois. Então era um homem a-religioso, que vai contra todo tipo de religião que prende o ser humano, que impede as pessoas de serem melhores. Às vezes a religião faz isso: ao invés de ajudar as pessoas, proíbe, inibe. Minha tese fala disso. Jesus Cristo não tinha religião, Maomé não tinha religião, Buda não tinha religião, porque criticaram as formas de religião que nos impedem de sermos melhores.

NSG: Úlitma pergunta: como você enxerga Deus? O que é, como você definiria?

Alvaci: É difícil. Não vou dar a resposta do catecismo, mas a gente aprende: é o ser supremo, grande, criador de todas as coisas. Mas tira isso. Eu consigo ver Deus em todas as coisas que eu, como humano, sou incapaz. Deus é criação, Deus é vida. A gente pode criar muitas coisas, mas não criar vida. Quem coloca o sopro de vida para as coisas, o que está por dentro disso? Eu acho que isso é Deus. No fundo é sempre aquilo das respostas…Deus é a resposta que eu não tenho como ser humano. Por isso ele às vezes está tão distante, mas às vezes tão próximo. E eu acho que São Francisco é alguém que percebeu isso. Ele conseguiu ver Deus em tudo, e por isso foi alguém extremamente apaixonado por esse Deus. Viu um bicho que para os outros é insignificante e viu Deus passando ali. Não posso definir como uma pessoa, como um espaço, mas se eu conseguir enxergar naquilo que está ao meu redor e em tudo aquilo que vai além do meu limite… Porque que aquilo está ali? Eu acho que isso aí é Deus.

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Luiz Pecora

Luiz Henrique é bacharel em Direito e desenhista amador. Conhecer pessoas, viajar e ler são suas coisas favoritas no mundo — melhor se estiverem juntas. Gosta de arte, música, biologia, geografia, história, religião, política, filosofia, astronomia, e não suporta azeitonas. Vai mostrando como é e vai sendo como pode, jogando seu corpo no mundo.

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