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Série Sincretismo – Parte III: Candomblé

por Luiz Pecora, 16 de setembro de 2014
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Tem uma terceira religião que não posso deixar de lado quando falamos de sincretismo. Candomblé. Bem capaz que seja a maior referência de sincretismo no Brasil e — apesar de ser muito confundida com a Umbanda — é ao candomblé que se atribui a sobrevivência de boa parte da africanidade na cultura brasileira. Da forma que se manifesta no Brasil, é fruto principalmente da combinação de cultos mantidos por negros de diferentes nações africanas e tem grande riqueza de mitologia – fora os orixás principais, existem milhares de entidades e arquétipos que nem imaginamos.

Apesar de bastante difundido e reconhecido como expressão religiosa brasileira e também da penetração que algumas crenças têm no cotidiano de todo brasileiro mesmo que não saiba, o candomblé nem sempre é aceito de forma tranquila. Provavelmente a causa dessa discriminação é o medo que provoca em cristãos mais conservadores. Para uma religião com raízes zoroástricas como a cristã, como não associar experiências mediúnicas e incorporações de entidades às histórias de demônios vindos do inferno? A verdade é que pouco compreendemos do que de fato é o candomblé. Não sei quantos de nós sabemos, por exemplo, que para o candomblé há um Deus supremo e criador, comumente associado ao Deus da Igreja Católica.

Quem topou conversar comigo hoje foi o Vitão, que me abriu seu apartamento num domingo de noite com algumas condições (ele não quer aparecer nas fotos de jeito nenhum. E ai se eu divulgar nome, telefone e endereço). Conheci o Vitão na faculdade, e é impossível se formar sem saber dele: é a referência de muitas gerações de antigos alunos. É daquelas pessoas que combinam coração imenso com passado difícil de acreditar. Dividiu isso comigo em muitas horas de papo que não caberiam inteira nessa entrevista. Uma pena.

Vitão: Vamos falar sobre o que? O que você quer saber?

NSG: A ideia da entrevista é mostrar a experiência pessoal, então sempre começamos falando de sua trajetória, qual sua ligação com a religião, como foi atraído…

Vitão: Primeiro, olha, vamos falar uma coisa. Mediundade, você nasce. Se você vai trabalhar com isso ou não vai trabalhar com isso, é teu livre arbítrio. Mas tem a ideia que você pode ser cobrado, sim. De início eu era totalmente contra porque venho de uma família extremamente católica, cresci totalmente em cima dos dogmas da Igreja Católica. Fiz seminário, fiquei onze anos em colégio de padre. Aí teve a transição da Igreja [o Concílio Vaticano II, que reformou a Igreja Católica atualizando seus princípios e práticas religiosas] e eu me desliguei… peguei uma certa paura da Igreja. Então vim morar definitivamente em São Paulo, para desbravar o mundo mesmo, quebrando o conceito de religião em si. Não frequentava nada. E começou meu estado mediúnico muitíssimo forte, que eu desconhecia.

NSG: Mas como acontecia?

Vitão: Eu incorporava. Estava na rua e incorporava. Eu saía, bebia, aí perdia a consciência e a coisa rodava. Mas rodava feio mesmo. Quando voltava em si justificava que estava bêbado, mas uma série de pessoas que me conheciam diziam que eu não era eu. Eu não queria ir. Um dia fui chamado por uma conhecida para acompanhá-la a ver uma senhora, mas ela não me disse que a senhora era mãe-de-santo. Então essa mãe-de-santo me chamou, acendeu uma vela, começou a rezar e eu incorporei. Ela disse que eu precisava cuidar daquilo, mas resolvi deixar pra lá. E a coisa engrossou, fiquei sem eira nem beira. Achei que eu tava ficando é louco mesmo. No desespero resolvi ir um dia numa federação espírita, onde me disseram que eu estava tão avançado que era até perigoso. Não podiam cuidar de mim, disseram para procurar a umbanda.

Tinha um amigo que morava comigo, e um dia ele pediu para eu fazer uma entrega num endereço que, nem ele nem eu sabíamos, era um centro de umbanda. Quando cheguei lá estava tendo uma incorporação de pomba gira. Disse que só estava fazendo uma entrega, mas como já tinha iniciado eu não podia mais sair. Então a pomba gira me chamou para beber uma pinga com ela, e assim que tomei me deu aquela leseira que eu não sabia onde que eu estava… voltei para casa e deitei na cama. Deitado na cama, eu vi uma figura que me levantou e aí fui tomado mesmo. Quando meu amigo chegou eu estava totalmente incorporado numa criatura. Deu aquele trabalho…fiquei cinco dias sem ter sossego. Fechava o olho e incorporava, não tinha hora. Passei a frequentar o terreiro, mas não me explicaram nada, entrava desesperado e saía mais desesperado. Uma senhora que vinha percebeu que eu não estava sendo cuidado devidamente, e passou a me dar mais esclarecimento. Fui trabalhar em outro terreiro, e o pai-de-santo lá me disse que meu caso não era de Umbanda, mas de Candomblé. Mas não queria. Tentei todo tipo de linha de Umbanda, eu estava num estado de sofrimento máximo, muito penoso… você não entende, não controla.

Até que depois de incorporar na frente de um padre, ele conversou com minha família, explicou que eu era médium mesmo. Disse que até tinha alguns padres que faziam exorcismo mas que isso não iria interromper meu fluxo e que eu tinha que trabalhar isso. Mais uma vez estava sendo chamado para o Candomblé. Fiz contato com uma senhora e fui lá. Ela fez o rito dela, mas eu não incorporei… achei estranho, estava desiludido porque apesar de não ter incorporado naquele rito, onde estava a solução? No fim, ela mandou tocar outra coisa, encostou em mim. Foi uma loucura que depois eu chorava de raiva, de medo, de incompreensão. Ela me prometeu dar uma explicação, me mandou fazer alguns trabalhos. Disse que tinha solução mas que minha esquerda estava muito avançada…

NSG: Esquerda? O que é esquerda?

Vitão: Exu. Exu que estava me dominando. A senhora me avisou que eu precisava fazer o assentamento do meu Exu, caso contrário ele me mataria. No estado de desespero que eu estava, o que ela falasse eu acatava, e segui para fazer o assentamento. Passei a fazer os trabalhos e acalmou. Depois de assentar Exu, ela me chamou. Disse que eu precisava fazer a iniciação para valer, que eu tinha seis meses para escolher uma casa se não Exu iria tomar minha cabeça. Comecei ali mesmo, aceitei as obrigações que ela me dava. Interrompeu aquele fluxo, a mãe-de-santo passou a me dar funções, me ensinava como fazia os ritos, estava começando a entender. Fui me envolvendo, mas as explicações que eu recebia não me convenciam. Um dia conversando com um pai-de-santo, ele disse que podia me orientar mais, e fui buscando, me aprofundando. Quando chegou o momento de ser raspado eu já entendia mais, sabia que caminho eu queria, que compromissos eu queria assumir… Preparei o terreno para me raspar ao mesmo tempo em duas nações, apesar da resistência que sabia que teria da mãe-de-santo, e com uma boa ajuda do destino deu certo! Depois disso comecei o meu próprio caminho, com a orientação daquele babalaô. Ele me disse: “agora quem bater à sua porta você não pode recusar: você é um babalaô”.

NSG: Como outras religiões entram na sua experiência? Você trabalha com isso de alguma forma?

Vitão: Eu tenho respeito com todas. Hoje eu vou tranquilamente na Igreja Católica, respeito os fundamentos. Padres são como babalaôs, cada um com seus valores, mas são. Eu tenho essa coisa do conhecimento, a que na Igreja Católica nunca me recusei e não me recuso até hoje. Quando eu abro um búzio eu até trabalho com o sincretismo. O que representa um Orixá, faço a ligação com santos católicos. Se eu falar de Xangô, falo de São Pedro. Se falar de Oxum, é uma Nossa Senhora de Aparecida. Cada Orixá representa certas características, e eu tento explicar, é importante ter o conhecimento.

NSG: Tem ainda a pergunta com que a gente encerra. Para você, existe um Deus, uma energia maior? O que ela é?

Vitão: Olha. Há um Deus da criação e eu acredito nisso. Ele criou tudo isso que está aí. Então você tem que ter visão, conhecimento. E discernimento, porque você vai ver tudo. Você pode ver o negativo para fugir dele. Você pode ver dificuldades, e ter de trabalhar essas dificuldades para atingir seus objetivos, que são teus. Se Ele é o Deus criador, é a supremacia, e que doou o reinado a todos. Oxalá significa o ar que você respira, a intelectualidade pura, o controle emocional. Porque você não vê só as coisas positivas. E você vai fazer uma fuga existencial? Não, meu caro, encare a realidade da vida e vá em frente. Vai fazer uma evolução e vai buscar conhecimento de toda a ordem. Então é isso, é a essência maior.

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Luiz Pecora

Luiz Henrique é bacharel em Direito e desenhista amador. Conhecer pessoas, viajar e ler são suas coisas favoritas no mundo — melhor se estiverem juntas. Gosta de arte, música, biologia, geografia, história, religião, política, filosofia, astronomia, e não suporta azeitonas. Vai mostrando como é e vai sendo como pode, jogando seu corpo no mundo.

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