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A velhinha do brechó de óculos

Ela era daquelas pessoas grossas, porém amargamente doces.

por Caio Blanco, 3 de março de 2016
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Eu fui diagnosticado com miopia e astigmatismo aos dezessete anos de idade. Não era um problema decorrente de carga genética. Ninguém da minha família próxima jamais usou um óculos. Meu pai e meus irmãos, inclusive, sempre se gabaram por possuir olhos de lince. O oftalmologista havia me dito que o caso havia se dado por conta de prática excessiva de leitura em ambientes escuros. Não que eu lesse muito, mas, quando lia, aparentemente a luz não era apropriada.

Quando chegou a hora de escolher meu primeiro óculos, após tiradas as medidas apropriadas do meu grau, me foi indicado um pequeno brechó de óculos no centro da cidade. O local era um daqueles tipos edificados com um pouco de mágica, imaginados em um outro mundo. Não deveria ter mais do que uns doze metros quadrados, mas possuía um pé direito altíssimo e todas as paredes eram forradas de prateleiras que, por sua vez, estavam recheadas de óculos. Todos os tipos de óculos que se pudesse imaginar. De todas as formas, cores, tamanhos, marcas, de todas as idades. Óculos que haviam pertencido a quem já morreu, óculos imaculados, nunca antes usados por pessoa qualquer, óculos que já rodaram o país, óculos que jamais deixaram as vitrines. E o que era mais impressionante: tudo ali dentro era ridiculamente barato. Você poderia conseguir um óculos bonitão, já com as lentes anti-reflexo e anti-riscos, por cerca de cinqüenta, sessenta reais. E se você possui qualquer experiência em compra de óculos sabe que esse preço é quase como um milagre de Natal.

O item mais inquietante do brechó, entretanto, era a sua proprietária. O local era comandado por uma velhinha japonesa que deveria ter, chutando baixo, uns noventa anos. Eu adoraria lembrar o nome dela. Refleti por um tempo em inventar um nome apenas para os propósitos desta crônica. Kyoko, talvez. Kyoko iria funcionar bem. Mas não consegui, não seria justo com ela. A verdade é que não sei seu nome, nunca soube.

Ela era daquelas pessoas grossas, porém amargamente doces. Ranzinza em uma medida adorável. Existia algo de tão espontâneo e bonito na velhinha japonesa que, mesmo quando ela revirava os olhos em seu não-disfarçado-tédio enquanto eu experimentava meu décimo oitavo par de óculos,  eu não me furtava o direito de um sorriso particular. Eu sou uma pessoa de péssimo humor e que detesta má educação aparente. Mas ela, ela podia ser daquele jeito sem me incomodar. Eu me lembro de um episódio específico, na segunda vez que fui lá. Os preços, mesmo depois de um ano, não haviam subido, e eu fiz menção de levar três óculos (que iriam custar, no total, algo em torno de um almoço executivo na Faria Lima). “Para que três óculos?!”, ela me perguntou enfática. “Tem dois olhos só, não precisa de três óculos, leva só um”. Eu poderia ter insistido, mas não o fiz. A obedeci instantaneamente; com esse tipo de gente mágica, não há discussão.

Esse óculos em questão sobreviveu por dois anos. Descobri, em uma ida a uma ótica perto de casa para apertar os parafusos (dos óculos, não os meus), que as lentes dele eram do melhor tipo que existe. “Você deve ter pagado uma nota nesse óculos”, brincou a moça da loja. Eu sorri e tentei esconder a culpa de ter pagado, na verdade, o preço de um Big Mac por eles. Há uma semana, porém, o diabo finalmente morreu. O parafuso desprendeu e eu perdi a haste.

Corri para o brechó da velhinha japonesa e o encontrei de portas fechadas. Não dei reparo nisso e voltei no dia seguinte, apenas para descobrir que as portas ainda não haviam aberto. A velhinha se foi. Morreu ano passado de não sei o que, me contou a dona da loja ao lado.

Confesso que minha primeira reação foi bastante egoísta. O primeiro pensamento que me veio em mente foi “onde é que eu vou conseguir óculos tão bons e tão baratos assim agora?”. Parece mesmo horrível, mas é a verdade e contra a verdade não há fingimentos que nos salve da própria culpa cristã.

Um tempo depois, esse sentimento começou a se transformar. Não, eu ainda não me sentia tocado pela morte da velhinha japonesa dona do brechó. Talvez seja mesmo insensibilidade minha, mas eu não consigo sofrer pela ida de pessoas a não ser que elas sejam realmente próximas a mim. Eu sempre tive essa dificuldade quase patológica de correlação com o próximo e não ia começar a ser sentimental naquele momento. Mas eu comecei a sentir falta dela nos termos em que ela faria falta para o mundo. Ela era um tipo tão raro de pessoa, um tipo tão escasso hoje em dia, que a maior perda, em definitivo, não foi exatamente para mim, ou para a meia dúzia de gatos pingados que insistiam em frequentar seu brechó. A perda mas evidente foi para esse conjunto de coisas misteriosas que regem o mundo. Essa velhinha, certamente, pesava para um lado da balança de energias mundanas que hoje quase não tem mais massa.

Se você vai em qualquer brechó paulistano hoje em dia e tenta comprar algo nos mesmos moldes que ela vendia, você não conseguirá pagar nada menos do que uma mini fortuna por conta do selo “vintage”que virá impregnado no seu produto. Mas a velhinha japonesa tratava suas coisas como velharias e isso era muito bonito. Ela tinha coisas lindas, óculos que qualquer moderninho paulistano morreria para ter na estante, mas eles eram óculos velhos. De ótima qualidade, mas velhos. E ela sabia disso, não escondia esse fato e trabalhava com ele. As coisas eram velhas, assim como ela, não havia vergonha qualquer nisso e ela não queria cobrar caro pelas velharia. Ela prestava um serviço de vender coisas velhas e era simples assim. Sem cobranças extras, sem atribuir valores que não existiam, sem aspirar a ser mais do que se era: uma vendedora de óculos antigos.

Eu nunca me vi como um garoto de óculos. Nunca pensei que eu chegaria a esse patamar de descrição. Me tornar “aquele, de óculos”. Mas eu me tornei essa pessoa. A maioria dos que me conhecem, enxergam-me e falam sobre mim  dessa forma: de óculos. E eu queria dizer, justamente por isso, que eu não sou somente o menino de óculos. Eu sou o menino dos óculos da velhinha do brechó de óculos. E isso, por alguma razão, faz toda a diferença.

Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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