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Corte suas unhas regularmente

Um texto de mão cheia sobre vida vazia.

por Caio Blanco, 17 de setembro de 2015

Caju sempre me diz que minhas unhas estão compridas. Essa semana não foi diferente. Estávamos conversando quando ela soltou uma exclamação de horror. “Caio, suas unhas estão muito compridas!”. Eu discordei. Achei que estavam com um tamanho aceitável e confessei que não aguentava mais cortar unhas. “Cortei semana passada”, defendi-me, ao que ela replicou sem piedade: “Cortamos unhas uma vez por semana, é assim que funciona”. Eu não tinha ideia. Vinte e cinco anos de idade e jamais reparei no ciclo de crescimento das minhas unhas das mãos. Caju era imperdoável: “E elas estão sujas, credo”.

Não estavam. Uma ou outra sim, mas era porque tomei um banho rápido depois da academia e estava correndo a manhã inteira com papéis, trabalhando em um roteiro recém-escrito por um amigo para um novo longa-metragem – o primeiro que gravaríamos. Aquilo não era propriamente sujeira. Era mais vida. A vida aconteceu, eu estava com unhas um pouco compridas e deu-se assim a trapalhada: acumulou-se um pouco de vida debaixo de minhas unhas. Parecia simples para mim na mesma medida em que se quedava asqueroso para Caju.

Eu gosto de ter unhas sujas de vida. Mais por auto-crença do que por histórico propriamente dito, sempre preferi pessoas de unhas sujas. Gente que se lambuzava de vida. Nunca fui afeito aos certinhos, àqueles de unhas bem cortadas e cutículas aprumadas. Eu, por definição, parece que estou sempre me sujando. Tenho um emprego muito estável e que me proporciona viagens e carros particulares reservados por uma secretária, mas não há um dia que se passe em que eu não pense em jogar tudo para o alto e ausentar-me seis meses em algum canto do mundo. Ontem era a Mongólia. Seis meses atrás pensei na Índia. Até o Carnaval, certamente terei imaginado mais uns sete destinos diferentes para o meu meio-ano sabático. 

Isso tudo a mim parece tão estranho, pois passei grande parte da vida, em realidade, querendo me ajustar. Se objetivei uma coisa durante meus anos mais tenros foi justamente querer ser certinho. Creditava à perfeição a solução para uma vida plena. De uns poucos tempos para cá, ando cedendo ao desespero dos inconstantes. Comecei a ver beleza em dar voz ao meu instinto mais interno, que era o de ser impulsivo, tomado pelo desejo, sem regras ou planejamentos. Por tempos, achei que era justamente isso o que me tornava especial: eu querer ser ator e escritor, não me ajustar nunca a nenhum trabalho sem reclamar do corporativismo, estar sempre em crise por conta dos pequenos problemas que iam surgindo ao longo do caminho. Acabei convencendo-me da minha alma de artista, talvez em uma proposta particular – e desesperada – de distinguir-me da massa que me rodeava, mas principalmente porque acreditava piamente estar destinado a um futuro brilhante.

Começo hoje, em grande medida, a perceber que aquilo ao que me tenho agarrado para destacar-me dos outros é justamente aquilo que mais me aproxima da minha geração. Minha alma de artista e minha sensibilidade a flor da pele são apenas sinônimos de pobre poesia para minha falta de foco, para minha pouca habilidade em lidar com problemas, para minha ingenuidade em relação aos problemas de verdade que a vida carrega, para minha birra em não querer crescer. Tentando desajustar-me dos meus pares, tornei-me exatamente iguais a eles: sou esse produto da geração Y, da classe média-mediana, desesperado por notoriedade, mas muito covarde para fazer sacrifícios por ela.

Sigo em constante mutação, fazendo escolhas inapropriadas e incoerentes a cada passo que dou. Não sofro pela fome no meu país e quase nunca fiz trabalho voluntário, mas acho aceitável sofrer por amor. E não coloco a fome e o amor em contrapontos de forma desconexa, mas apenas para ilustrar  que ando perdendo a habilidade de sofrer pelos outros e só aquilo que é de foro íntimo tem me tocado. Sofri tanto uma última vez dessas por aí que, como jovem privilegiado que sou, procurei ajuda psicológica. Ao invés de me sentir estúpido por ter sofrido tanto por algo que, a médio prazo, não possuiria tanta importância assim, decidi pagar alguém para me dizer que meu sofrimento era válido. Sucesso: estava restabelecido meu auto-centrismo e eu voltei a acreditar que era aceitável não sofrer pelo destino da minha carreira ou pela crise econômica que se instalava, mas que sofrer por três meses no ralo de um amasso mal dado estava permitido.

Veja, não quero colocar-me para baixo e dizer que absolutamente tudo o que faço e tudo o que digo é um produto desse meu jeito pseudo-dramático de menino rico-branco-privilegiado e que meus problemas simplesmente não importam. Continuo querendo atingir algo brilhante, sem dúvida. Mas sou obrigado a admitir que as chances estão cada vez menos a meu favor e que a probabilidade de deixar algo para a posteridade (que não seja uma gorda previdência privada) fica cada vez mais baixa à medida que o tempo passa e eu engordo minhas nádegas ao redor dessa cadeira de conformismo. Eu lentamente vou me enquadrando nesse meu destino pré-determinado, nessa vida que parece que sempre foi a minha única opção (perceba como, quase inconscientemente, vou passando a culpa de meu fracasso a um destino que, aparentemente, eu não teria condições de alterar. Esse é o sintoma classista-média número 3: a auto-vitimização).

Minhas unhas vão ficando também cada vez mais rentes à pele, menos sujas e mais bem-tratadas. Até porque, percebi agorinha, unhas sujas não têm nada a ver com o sentir, com o ser, com ter uma vida epifânica. Unhas sujas não significam impulsividade, paixão à vida, juventude pulsante, genialidade ou sequer sensibilidade acima da média. Significam apenas que você é pouco considerativo em relação a um ponto importante da higiene-pessoal. E isso é outro sintoma de nossos tempos, de nossa classe e, mais ainda, de nossa geração: acreditar que uma falha comum possa ser perdoada quando a enfeitamos de nosso cinismo poético. “Não são unhas sujas, é vida que se acumular em meus dedos”. Lorota.

No fim, deixo aos leitores um conselho: pode até ser que você que me lê não seja assim como eu, um certinho sem talento que vê coisas demais onde elas simplesmente não existem. Talvez você seja realmente talentoso e quem sabe viva a vida de forma plena, com experiências realmente incríveis – e reais. Quem sabe você de fato tenha ido para a Mongólia e tenha coisas realmente importantes para dizer a todos nós. Se for esse o caso, eu te peço, não se esqueça: corte suas unhas. Tenha experiências de verdade com unhas limpas ao invés de experiências chinfrins de unhas sujas. Quem sabe assim você possa, diferentemente de mim, não precisar utilizar-se de metáforas sobre unhas das mãos, mas consiga, enfim, encontrar poesia onde ela realmente existe. 

Pegue a vida pelas mãos, enfim; não invente que a guarda debaixo das unhas.

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Foto de Mark  Spearman

Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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