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Iemanjá há de perdoar

O desabafo último de que um coração sincero é tudo aquilo que um ritual de virada precisa.

por Caio Blanco, 12 de janeiro de 2015

Eu comecei com rituais de passagem de Ano Novo na madrugada de 2010 para 2011. Foi no último reveillón que passei com meus pais e com uma parte distante da família. Estávamos na praia, na casa do meu padrinho (que virou evangélico, então acho que deixou de ser meu padrinho de batismo), quando eu decidi comer uvas, sementes de romã e um prato de lentilha com um dos pés levantados. Não sei bem o porquê da decisão. Estava naquela época da vida em que eu era agnóstico para todas as coisas, quando não ativamente descrente. Devo ter iniciado o ritual por simples tédio e achei que era de bom tom com a vida tentar algo diferente – e manter a minha cabeça longe de Memórias de minhas putas tristes, que era o livro que roubava minha atenção à época e causava certo espanto quando uma ou outra prima desavisada lia o título da capa pensando tratar-se de um volume de Harry Potter. Como já tinha iniciado esses rituais um pouco antes da meia-noite, decidi levar a coisa a sério: encabecei uma caminhada até a praia e pulei as sete ondas. De novo, não sei bem o porquê. Eu sequer conhecia Iemanjá e desconfio que eu deva ter errado a conta e pulado ondas a mais ou a menos.

Coincidência ou não, 2011 foi um bom ano, cheio de acontecimentos que pendiam mais para o benéfico do que para o caos completo e, com isso, eu já estava bem satisfeito. Sou desse tipo de gente que acredita que estar vivo já configura razão o suficiente para pensar que as coisas estão dando certo. Nesse sentido, não sou muito exigente. Ao contrário do que era quando tinha onze anos e comprava miniaturas japonesas de Pokémons. Em relação a isso sim, eu era muito exigente, examinando com lupa cada detalhe da miniatura para ver se correspondiam aos meus padrões de qualidade.

Na passagem de 2011 para 2012 eu estava na Escócia e participei de toda a tradicão do Hogmanay para ver se 2013 continuava a me trazer boa sorte. Os rituais escoceses compreendiam uma festa de três dias, com procissão de tochas, jogos de espadas, whisky a valer e uma boa dose de tolerância ao frio, já que tudo acontece ao ar livre; o que faz muito sentido já que tochas são perigosas quando enclausuradas. Eu não sei se 2013 foi um bom ano, não me lembro. Mas acho que foi, porque eu estava vivo.

Em 2012 eu estava confinado em uma viagem de ano novo sem muita emoção. O destino era uma praia perto no litoral norte de São Paulo. Como estava indo para a praia, lembrei do último ano novo que havia passado com meus pais (que também foi na praia, por isso a associação lógica) e em como todo o ritual de sementes e lentilhas havia me trazido boa sorte. Decidi então investir na idéia e levar toda a coisa a um outro nível. Pesquisei cores de cuecas e seus significados. Depois de extensa pesquisa – toda ela realizada durante o expediente laborial – decidi que seria melhor passar a virada com a cueca de cor roxa, que queria dizer transformação. Eu ainda duvido um pouco da idoneidade do site que me passou tal significado, pois era um site de astrologia e eu acredito muito pouco em astrologia, mas é que eu estava tão desesperado para pular fora do Direito e de toda aquela chatice de análises contratuais que uma cueca roxa parecia ser a única opção plausível para virar o ano.

Foi em 2012 também que descobri Iemanjá. Quer dizer, redescobri. Redescobri não: aperfeiçoei o conhecimento. Tudo que eu sabia sobre a dita, eu havia aprendido assistindo Porto dos Milagres enquanto tentava entender porque é que eu sentia mais atração pelo peito cabeludo do Marcos Palmeira do que pelas bochechas aveludadas da Flávia Alessandra. Vá lá: todo mundo já teve seu Guma na vida. Pois bem, sabia que ela era a rainha dos mares, zeladora dos pescadores e parte importantíssima na pobre trama da novela das oito. Resolvi então inventar um ritual próprio: escrevi em um pedaço de papel tudo o que queria deixar para trás (incluindo aqui um ex-relacionamento arruinado pela traição de um amigo). Essa carta, queimei. Em outro pedaço de papel, escrevi tudo aquilo que queria para o ano seguinte (incluindo aqui um ex-amigo que havia arruinado um ex-relacionamento). Essa carta, dobrei (meu primo dobrou) em forma de barquinho de papel e levei ao mar à meia noite. Pulei as sete ondas, mas lembro que isso deu-se mal, porque eu estava bêbado e constantemente perdia a conta das ondas puladas e dos desejos feitos – devo ter pulado dezoito ondas e ter pedido por dinheiro umas nove vezes. 2013 veio para reconfirmar as minhas crenças de que todos os rituais estavam surtindo efeitos reais na minha vida: o amigo voltou, eu mudei de emprego e o ex-namorado sumiu. Vitória.

De 2013 para 2014, tentei repetir tudo, porém o caos instaurou-se: ninguém na casa que eu estava passando o ano novo praiano sabia fazer um barquinho de papel. Tive que amassar o papel e atirar longe no mar. Não sei como Iemanjá encarou esse fato. Se entendeu que era o desespero que um ex-agnóstico em validar seus pedidos, ou se encarou como um ato de rebeldia contra as ondas do mar. Estava de cueca vermelha, que queria dizer paixão. Eu lembro de estar desesperado por alguma atividade sexual durante 2013, então o vermelho caiu como uma luva. Psicologicamente, fiz sexo como nunca. Acho que porque comecei a prestar atenção no sexo e a fazer as contas. Antes não fazia. As contas. Quando se dá importância à coisa, veja, ela de fato fica importante.

Esse último ano novo, porém, seria o ano novo definitivo: estava indo para a Bahia, reduto-origem da rainha. Nenhum pedido levado pela espuma das ondas pode ser mais poderoso do que aquele feito aos pés das areias baianas. Tudo tinha que ser perfeito. Como estava crente na força dos rituais, escolhi a cueca amarela, pois decidi que com vinte e cinco anos, dinheiro é mais importante do que paixão e do que realização profissional. A gente percebe que amadureceu quando nos atinge a consciência de que reclamar da vida não adianta absolutamente nada e mais vale uns mangos a mais na carteira do que aquela ansiedade incômoda da juventude muito juventude.

Esse também era o ano novo definitivo pois, algumas semanas antes da virada, havia feito uma visita a um centro de Umbanda em uma festa para Iemanjá. Uma amiga havia convidado e eu, como ex-bom agnóstico, achei que era bom comparecer. Cantei músicas do mar, conversei com o preto velho e dele ganhei um chumaço de flores e duas velas. Uma branca e uma azul. As flores eram para ficar ao lado da cama e, depois de murchas, eram para serem jogadas ao pé de uma árvore. Uma das velas para ser acendida no Natal; a outra, no ano novo.

A história resume-se e eu acabo logo, prometo: após murchas, joguei o chumaço de flores da minha sacada ao pé de uma árvore guarda-sol. A flor aterrissou em um pequeno galho depositado no tronco da árvore, a alguns centímetro do chão – e do oficial pé da árvore. Espero que tenha contado. Esqueci completamente de acender a vela no Natal. Simplesmente esqueci. Pensei comigo que acenderia depois. Mas depois, quando lembrei de acender, no dia 27 já, havia esquecido qual deveria acender, se a azul ou a branca. Pânico me dominava. Decidi que faria as pazes com Iemanjá acendendo ambas as velas – a branca e a azul – alguns segundos antes do ano novo, na praia, naqueles pequenos rituais que sempre invejei dos nativos-caiçaras cavando buracos na areia. Pois bem, foi o que fiz: na praia de Caraíva, na Bahia, acendi as velas alguns minutos antes da meia-noite e queimei o pedaço de papel com as coisas ruins. Ao bater das doze badaladas, a turma de recém-conhecidos da viagem decidiu arraigar um momento de instantânea intimidade, abraçando-se em roda e rodopiando ao som dos fogos de artifício. Alguém perdeu o equilíbrio, não lembro bem quem, provavelmente eu, e para evitar que algumas pessoas se quiemassem com as minhas velas de ano novo, uma colega arrastou uma pezada de areia em cima delas e as cobriu para evitar o acidente. Mortifiquei-me, mas fingi que estava bem, enquanto rodopiava abraçado com estranhos, pedindo desculpas internas e tentando autoconvencer-me de que não era minha culpa e de que Iemanjá deveria gostar mesmo de alegria e de aquilo tinha sido um ato espontâneo de alegria, por favor Iemanjá, me perdoa.

Virei-me, indulgente, e fui para o mar tentar salvar a última tradição que me restava. Como não sabia fazer o barquinho de papel com os desejos para 2015 e também não queria tacar um papel amassado na cara de Iemanjá que já devia era estar querendo soltar um raio na minha cuca (se é que Iemanjá solta raios, não sei), dobrei a carta de forma muito disciplinada e pensei internamente “está aqui, Iemanjá, desculpe não saber fazer um barquinho de papel, isso é o melhor que consigo” e soltei o quadradinho de papel nas ondas de forma delicada e elas arrastaram minha cartinha para o fundo do mar e eu acabei achando, no fundo, que aquele momento tão singelo havia compensado tudo: a cueca amarela cheia de ganância, a flor presa no galho descumprindo a regra do pé de árvore, o esquecimento das velas no Natal, a pezada de areia nas velas do ano novo. Quando pulei as ondinhas, meio que pulei sem querer uma oitava, mas ignorei esse fato porque realmente estava me sentindo muito bem com todo o momento que havia tido com Iemanjá e com o meu quadradinho de papel.

No dia seguinte, ainda com a roupa da noitada de ano novo, acendi meu cigarro da primeira manhã de 2015 (proveniente já do segundo maço de 2015), enquanto apalpava o meu bolso para jogar fora os pedaços de papel em branco não utilizados que eu havia cortado para que outras pessoas seguissem minha tradicão na noite anterior. Quando desdobrei o papel, senti um gelar na barriga: ali, na minha mão, completamente amassado pela minha bunda, o pedaço de papel contendo todos os desejos de 2015. O que foi que eu joguei no mar, minha Iemanjá? Um papel em branco? Ou pior: aquilo que queria deixar para trás em 2014? Será que Iemanjá tem leitura seletiva, irá entender? E o que será que queimei? Aquilo mesmo que deveria queimar ou apenas um papel em branco?

Ao ver minha cara de completo horror, uma amiga perguntou o que ocorria. Contei o causo e lhe mostrei o papel amassado com todos os desejos de um ano feliz. Todos os desejos que jamais seriam levado pelo mar. Todos os desejos sobre os quais Iemanjá jamais tomaria ciência. Ela sorriu e disparou “que massa, pendura na tua parede, feito um presente que ela te deu de volta”.

Sorri, agradeci a gentileza e tentei acreditar que era um bom agouro. Um agouro de boa-sorte. Um presente. Guardei o papel amassado em um estojo e pretendo emoldurá-lo.

Pretendo emoldurá-lo assim que o encontrar.

Esqueci onde eu o guardei.

Perdoa, Iemanjá. Perdoa eu que eu sou mesmo assim: todo desconjuntado.

 

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Foto de Jairo Abud

 

Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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