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Certa Paraty, incerto Newton

A força gravitacional no Festival de Jazz de Paraty

por Adolfo Caboclo, 30 de junho de 2017
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Por mais que Isaac Newton tenha afirmado que a constante gravitacional exerce 9,81 m/s² sobre os corpos e coisas desse mundão, comecei a duvidar. Estava certo de que a força G era muito mais severa com meu corpo: pelo menos o dobro de metros por segundo ao quadrado de pressão devia operar constantemente sobre meu ser.

São tempos em que qualquer paulistano médio deslegitima as Leis de Newton ao defender o aumento da velocidade nas marginais. Por qual motivo eu não teria o mesmo sentimento de potência e não acreditaria que o cosmos me escolheu para ter um corpo amaldiçoado por passos mais lentos e pesados que o normal. Por costas curvadas por arrobas de desventuras gravitacionais.

Foi nesse realidade pesada e particular que meu amigo designer hipster me convidou para ir ao Festival de Jazz de Paraty, no estado do Rio de Janeiro. Me chamou para uma casa animada, cheia de pessoas meio intelectuais que tomam negroni. Local onde todos os moços hospedados tinham barbinha e todas as moças franjinha. De cara, fiquei com preguiça do convite.

Não que eu não tome negroni e nem tenha barbinha. O problema é que, realmente, minha gravidade subjetiva me atrapalhava para discutir assuntos como mochilões no leste europeu e o texto do Haddad na Piauí. Definitivamente, a gravidade tinha amassado todas as minhas máscaras sociais básicas de sobrevivência. Entre elas, a de hipster meio intelectual.

Apesar dos pesares, por se tratar, em especial, do convite desse amigo designer hipster, acabei aceitando.

Ele é um camarada de muito prestígio dentro do meu microcosmos, muito querido. Fez um esforço ímpar para alugar uma casa em pleno centro histórico de Paraty e organizou tudo com tanto esmero, que teve o cuidado de usar em todas as artes no Facebook e fotos de grupos de WhatsApps destinados às articulações da viagem fontes idênticas às dos filmes do Woody Allen e memes com referências de músicas de Cole Porter. Diante desse cenário, fui persuadido pela estética do festival e viajei para o litoral fluminense com alguma certeza no coração.

Parti em um carro cheio de clichês da geração X paulistana. Três publicitários, uma historiadora e uma jornalista. Todos escutando Dona Onete, Chico Buarque e elogiando os DJs da festa Selvagem. Falamos sobre energia, olhamos para as estrelas na serra e comentamos sobre ufologia e evolução. Por fim, sentimos a trepidação do carro sobre as pedras das ruas do centro histórico de Paraty com bastante sofrimento, devido à vontade de fazer xixi após as horas de estrada. Descendo do carro, fui urinar e junto com a urina foi embora toda a gravidade extra que me achatava. Newton voltava a ter razão sobre a força G.

Impressionante como a gravidade regular me permitiu ver uma imensidão de belezas no mundo. Os companheiros que conheci na casa em que me alojaria, os mesmos que outrora julgava serem apenas bebedores de negroni e leitores da matéria do Haddad na Piauí, se demonstraram pessoas infinitamente mais complexas e afetuosas.

Assim que chegamos na casa, um deles, João, nos recebeu de forma cordial. Indicou quartos, nos entregou cópias de chaves, horas depois me convidou para fazer percussão em seu grupo de maracatu e no dia seguinte acordou todos com o cheiro do café que preparava. Fiz questão de começar a chamá-lo de “João Gentileza”.

Uma moça, a Marina, se mostrava a encarnação da alegria da casa. Sempre dançando, relatava felicidade em estar em Paraty de forma tão independente e empoderada. Sua natureza esfuziante sempre empunhava uma long neck gelada na mão. Por muitas vezes, ela não apenas bebia cerveja, como também oferecia bebida aos outros camaradas. Passei a chamá-la de “Marininha Long Neck”.

Um rapaz delgado, Pedro, me contava sobre como largou a agência de publicidade e hoje mora em uma ilha em Angra dos Reis, se alimentando apenas de frutas e sementes e me explicando com muita sabedoria que até a água mineral que bebemos é envenenada. Enquanto isso, o cara mais observador da casa, Bruno, sempre comentava sobre trechos interessantes de livros que tinha lido e mostrava absoluto entendimento da obra de Tolkien e outras narrativas fantásticas.

Entre a dúzia de pessoas que compartilhavam aquela casa rústica no centro histórico de Paraty, eu estava bem encantado pelas doze. Mas meu coração parecia transbordar ainda mais carinho que aquilo. Pelas ruas de pedras da cidade, por vez ou outra eu encontrava amigos e conhecidos – tanto de São Paulo, como do Rio – e os abraçava e me esforçava para relatar a satisfação de os rever bem e felizes naquele cenário paratiense.

Já nas primeiras horas da manhã, meu desjejum era repleto de memória afetiva. Tinha tapioca, açaí e, mesmo antes do almoço, já bebericava a cachaça local, Gabriela, que foi tão presente na minha juventude na Cidade Maravilhosa.

Por vezes gostava de escapar do meu novo grupo de amigos e ia até a casa vizinha, alugada pela mãe e pela tia do meu amigo designer hipster. Mulheres de grande experiência que me mostravam facetas do festival de jazz e também da vida com um olhar absolutamente inovador.

Foi em um café que um senhor de 88 anos veio conversar comigo. O papo engrenou. O senhor se apresentou como o Comendador Antônio Conti. Homem que nasceu em Paraty e vive na cidade desde então. Prestigiado pelos seus conterrâneos, ao ponto da nova estrada Paraty-Cunha ter ganho seu nome. O Comendador me recitou um poema que compôs com 14 anos pelas ruas do centro histórico.

Versos que diziam: “…é sol, é praia, é noite, é serenata. São pedras ladrilhando a minha rua. O mar passeia solitário nas calçadas, espelhando a lua cheia nos beirais e nas calçadas. Vida, como é bom a gente viver. Amo, como é a bom a gente amar aqui. Na praça, no cais, na praia: tudo isso é Paraty. Tudo isso é para ti”.

O sábado de tarde em que conheci o Comendador era uma prévia do espetáculo de informações que viriam com o Festival de Jazz em si. Os palcos de onde saíam a música típica de Nova Orleans que eu não consigo traduzir em palavras de uma crônica.

Em milhares de anos de existência da raça humana, cresci na bolha cinza paulistana, exatamente no hiato de 30 anos em que não se pode mais ver estrelas no céu. Entre hipsters, tias e o Comendador, fui abençoado pelo mar, pelas ruas de pedras e pelas estrelas do céu de Paraty. Degustei a delícia de viver uma gravidade coerente com a que Newton cravou.

No domingo de madrugada, voltei para São Paulo. Pelo menos o dobro de metros por segundo ao quadrado de pressão voltava a exercer sobre o meu ser. A Marginal estava livre, mas de repente parou. Era um acidente feito por algum dos milhares de incrédulos do Princípio Fundamental da Dinâmica. Acordei cabisbaixo na segunda-feira… isso até meu WhatsApp vibrar.

Era o João Gentileza me convidando para a Festa do Boi, no Morro do Querosene. Disse que o pessoal da casa de Paraty iria. Quem sabe, por lá, as coisas ficarão mais leves?

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Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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