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Ayahuasca, psicodelia, índios e fotografias

Um papo com Rafael Beraldo sobre psicodelia e o convívio com índios do Acre.

por Adolfo Caboclo, 26 de fevereiro de 2015
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Em minha cozinha eu derretia uma colher de manteiga que iria dourar uma cebola roxa picada, quando o meu convidado me perguntou: “antes de qualquer coisa, qual é o seu relacionamento com as drogas?”

Parei e tentei lembrar de algumas experiências. Da minha boêmia careta e do meu maior contato com a psicodelia em momentos de convivência com cachoeiras ou conchas. Quando vi, a cebola já estava dourada e eu tinha acabado de colocar creme de leite e lemon pepper na panela. A falta de uma taça de vinho branco na receita do molho de macarrão que eu fazia me incomodava, mas o meu convidado não ingeria álcool. Meu convidado, o fotógrafo Rafael Beraldo, é estudioso de inúmeros livros sobre psicodelia e um dos gestores do site Mundo Cogumelo.

O conheci em um curso de silêncio — um retiro onde o passar dos dias sem falar nos ilumina com alguma auto-crítica. Foi no meio da mais absoluta calmaria que me tornei amigo do Rafa. Um cara de feição calma, delgado, longilíneo, amoroso e que não bebe por crer que o álcool é uma droga limitada que harmoniza “apenas com comida” (quantas reflexões espiritualizadas cabem nessa frase, não?)

Meu macarrão já estava pronto e rangamos na sacada da minha casa, acompanhados do suco verde detox monstro que o Rafa gentilmente trouxe. Após a refeição, a entrevista começaria pra valer, falaríamos de sua participação na psicodelia consciente que ele tanto difunde no Mundo Cogumelo e sobre o mês em que ele ficou numa tribo indígena na cidade de Jordão, interior do Acre. Uma frase que ele me disse durante o jantar foi muito interessante: “Sou fotógrafo, quando fotografo em uma câmera analógica tenho que pegar o filme e preciso de substâncias químicas para fazerem as imagens se revelarem. Com a nossa mente acontece algo muito parecido”.

Abaixo segue o meu papo com o amoroso Rafa.

Rafael Beraldo: Olha o tamanho desse livro (mostrando o livro chamado Almanaque das Drogas, do Tarso Araújo, enorme e com centenas de páginas). Ele tem uma parte de saúde, história, depois de economia e depois de política, e olha o tamanho desse livro, só desse livro. Então você pensa que alguma coisa você não deve saber.

A gente não entende muito o motivo de algumas drogas serem proibidas. A gente aprendeu que as drogas são proibidas por uma questão de saúde e de segurança, mas na verdade é uma questão econômica e social. Maconha e cocaína são por interesses econômicos, ao contrario do LSD, por exemplo.

Não Só o Gato: Seu TCC se chama “Imagens Reveladas pelo Cipó”.

Rafa: Cipó é um dos ingredientes do ayahuasca. Eu fui pro Acre, na floresta amazônica, e fiquei por lá 30 dias, numa aldeia apenas com índios, bem isolado. Bebendo ayahuasca e fotografando.

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NSG: Como começou a sua relação com as drogas?

Rafa: Eu tive sorte, sempre fui interessado em drogas e os meus amigos eram muito caretas. Muito. Nem álcool, éramos uns nerdões. Então fui pro Canadá e experimentei uma vez a maconha, mas não tinha entendido muito bem o que tinha acontecido.

É muito isso: com as drogas, na primeira vez, você não entende o que está acontecendo. O efeito está acontecendo no seu cérebro, mas você não entende, precisa de uma sacada, um estalo pra entender. Só que muitas vezes você passa por uma experiência inteira sem entender o que, de fato, está acontecendo. Então, um dia pesquisando, ouvi falar sobre LSD.

Li várias vezes a página da Wikipedia, era muito interessante. Falava de alterar espaço e tempo. Essa foi a primeira vez que eu estudei uma droga, olhei a fundo…

NSG: Você começou a pesquisar sobre droga pela experiência ou por causa de alguma referência cultural, musical?

Rafa: Que nada! Estudei pela experiência mesmo. Por achar legal o fato de distorcer o tempo e o espaço.

Antes de gostar de droga eu gostava muito de projeção astral, eu tinha um professor de química que depois da aula ficava conversando comigo sobre projeção astral. É o desdobramento: você dorme, seu corpo fica na cama enquanto você viaja pelo plano astral e vê pessoas que já morreram. Também gostava muito de meditação. Sempre gostei de alterar minha consciência, mas não sabia que através das drogas eu podia fazer isso de um jeito seguro, então eu comecei a estudar e a experimentar.

Como eu disse, a sorte é que nunca um amigo meu gostou de drogas. Então eu tive que experimentar sozinho, em casa, “você com você”, então você começa a interiorizar essa experiência e não dá pra fugir. Tomar um LSD, fechar os olhos e ficar em silêncio por 6 horas é uma experiência muito intensa: de rever sua vida, ver coisas que te aconteceram. É diferente de ir em uma rave e tomar.

Eram experiências muito transformadoras e cada vez eu comecei a ler mais. Meu uso caiu, minha leitura subiu. Descobri os cogumelos mágicos, descobri a ayahuasca, descobri os cactos mágicos, descobri outros sintéticos com potencial terapêutico.

NSG: O ayahuasca, por exemplo, você descobriu em qual contexto?

Rafa: Quando eu li e descobri que era uma religião eu achei o máximo. Eu só experimentei no contexto xamânico. Em volta de uma fogueira com tambor e cantos indígenas, nunca conheci o Santo Daime, mas já li muito sobre o Daime. A minha espiritualidade cresceu muito.

Conheci o ayahuasca e descobri em São Paulo um lugar chamado Floresta dos Unicórnios. É um lugar que um indígena chamado Yawa Bane dá o chá. Comecei a ir em 2013, lá você toma ayahuasca pra ficar em silêncio. A prioridade é “entrar pra dentro”, uma coisa muito ancestral, com tambores tocando.

NSG: Você é fotografo…

Rafa: Quando eu comecei a estudar fotografia conheci esse cara aqui, o Alex Grey [mostra outro livro enorme], um cara que teve muitas experiências místicas. Ele teve uma experiência com o LSD em que pinta o que vê. Descobri ele no primeiro ano da faculdade e tive a ideia de tentar fazer isso com a fotografia. Na fotografia é difícil, porque você não começa de uma folha em branco. Você tem que clicar uma imagem e então desconstruir. E pra ter/conseguir, essa imagem — pra ter TCC –, eu tive que tomar ayahuasca lá no Acre.

NSG: Me conte da viagem.

Rafa: Foi em 2014. O Yawa Bane disse que ia pra tribo dele e me convidou pra ir junto, só que teve um imprevisto e ele não pôde ir. Então fui sozinho e fiz tudo por indicação dele. Cheguei lá, tinha uma pessoa me esperando no aeroporto, que me levou de barco até uma aldeia.

Fui até Rio Branco de avião, de lá fui em um aviãozinho pra uma cidade indígena chamada Jordão e dessa cidade peguei um barco e naveguei 4 horas rio adentro. Lá, a língua portuguesa é como se fosse o inglês pra gente, só alguns falavam… Tinha lugar lá que eles só falavam a língua deles, o hatxa-kuin.

A tribo se chama de Huni Kuin — na verdade esse é um nome novo, no passado eles foram batizados por outras tribos como Kaxinawá, mas eles não gostam desse nome que significa “cara de morcego”, então mudaram, faz uns anos.

Eu dormi em rede os 30 dias, tomei banho de rio nos 30 dias. Nos 30 dias que passei lá eu fui em 5 cerimonias de ayahuasca, é muita coisa. Em São Paulo, o máximo que eu experimentava era uma vez a cada 3 meses, é uma coisa muito intensa.

No começo lá foi um choque cultural muito grande, fiquei muito tenso. O resto dos dias eu ia caçar e pescar, comer carne de tatu, de paca e de peixe. Caçava com um facão grande, que eles chamam de teçado, e com espingarda… nada de arco e flecha. As crianças caçavam com baladeira/estilingue. Lá a gente comia basicamente, no almoço, café e jantar, mandioca e banana.

A gente fez um negócio que chamava Dança dos Legumes. Um ritual feito para os legumes crescerem, tudo lá é relacionado com a sobrevivência.

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NSG: E como você se sentiu no meio disso tudo?

Rafa: Tudo lá era família, todos mundo lá era muito unido, tanto que no décimo dia eu quase voltei para São Paulo. Vi aquele sentimento de família e me toquei que eu estava no Acre, sozinho, no meio de uma tribo, longe da minha família procurando um chá alucinógeno. Foi aí que eu entendi que tem certos momentos que você tem que chegar no “fundo do poço” pra entender algumas coisas. Eu estava tentando controlar tudo, minha estadia, minha viagem, minhas fotos… aí veio na minha cabeça que o que era pra acontecer, ia acontecer. Então arranquei a “roupa de antropólogo” que estava vestindo, coloquei uma regata e fui viver. Aproveitar as coisas como elas são.

Impressionante, quando desencanei foi justamente quando eles marcaram o primeiro ritual.

NSG: E quem que usa o ayahuasca lá? 

Rafa: Lá ayahuasca é chamado de Nixi Pãe, que significa “cipó que traz a força”. Os adultos usam como forma de estudo. Os mais velhos sempre ensinando os mais novos.

Você aprende os cantos, os mais novos vão pra aprender, as crianças só tomam com supervisão de adultos e em uma dose muito menor. É uma coisa muito mágica. Eles fazem um canto que fica se repetindo, que parece uma engrenagem que quando acaba é impressionante, o “negócio” passa instantaneamente.

NSG: E, no geral, foram experiências boas?

Rafa: Eu escrevi um texto chamado “A Extinção do Termo Bad Trip“. Por que o que é bad trip? Um termo que surgiu nos anos 60 quando as pessoas começaram a experimentar ácido e as coisas davam errado — tinha uma manifestação contra a guerra do Vietnã, distribuíam LSD a rodo e dois ou três ficavam no chão se estrebuchando. Mas se você for fazer uma comparação com a vida, a viagem de ayahuasca, ou de LSD, é uma experiência. Não tem experiência ruim: tem experiência fácil e experiência difícil. Tanto que esse termo saiu da esfera dos psicodélicos e hoje é usado em São Paulo para coisas normais da vida, como um fim de namoro, por exemplo.

Até porque, ayahuasca não tem uso recreativo. LSD, MDMA, cogumelo, pode ter uso recreativo, agora o ayahuasca tem um efeito purgante fortíssimo. É uma experiência.

Lá no Acre, todas as experiências foram muito boas. Experiências onde você não tem mais corpo, uma projeção astral mesmo, e sabe que alguém vai cuidar de você.

Tem aquele mito né, de que não vai “voltar” mais. Você não volta o mesmo, e claro que se desconectar da realidade te faz voltar diferente, e quanto menos coisas por perto você tiver, mais ficará desconectado — você não vai se desconectar plenamente com seu pai ou o seu celular do lado.

As quatro primeiras experiências eu tomei pouquinho, pra ficar conectado, porque eu estava lá pra fotografar, fazer um TCC, mas na última cerimônia eu já estava amigo de todo mundo, então eu me soltei mesmo.

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NSG: Como funciona esse negócio do ayahuasca ser feito de cipó?

Rafa: Legal que em todos os povos indígenas do Brasil e alguns do Peru contam a mesma história. O ayahuasca é um cipó e uma folha, massetados em um caldeirão e cozido por três dias. O que faz você ver coisas do mundo espiritual que antes você não podia enxergar é uma substância chamada DMT, só que seu estômago tem uma enzima que quebra o DMT, a combinação desse cipó e dessa folha impedem essa enzima.

Como os índios descobriram isso? Ninguém sabe! São plantas distintas em uma floresta com uma infinidade de plantas e cipós. E não é uma folha chamativa, é uma folha normal chamada Kawa ou Psychotria Viridis. Daí a história que eles contam é muito doida e é uma história que vários povos, que nem tem tanto contato, contam exatamente da mesma forma: um índio foi caçar e viu uma mulher muito bonita que era metade mulher e metade cobra, então eles casaram e foram morar embaixo do rio. Lá no “mundo da cobra”, debaixo do rio, ele aprendeu a fazer o chá que as cobras tomavam. Então ele tomou o chá, ficou alterado, se assustou com as cobras, ficou com medo, e saiu correndo, fugindo… depois de morar uns dez anos com as cobras ele voltou pro nosso mundo e ensinou os outros índios a fazerem o chá.

NSG: E quando deu a hora de você voltar pra São Paulo, como foi?

Rafa: Eu estava muito empolgado pra voltar, mas eu queria ficar lá.

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Abaixo segue um vídeo e algumas das fotografias que foram geradas através da viagem do Rafael:

“Fui para uma floresta encantada.
Onde cada animal, pedra ou árvore tinham espirito.
Dancei e cantei com o povo de lá.
Banhos mágicos para trazer a boa sorte na caça e no amor.
Bebi do chá de um cipó.
Um cipó muito alto, que vem da terra que sobe as árvores e vai para o céu, trazendo de lá uma força de outro mundo.
Visões e ensinamentos para essa e outras vidas.
Cresci e despertei para a minha real existência aqui como ser.
Te convido a entrar comigo nesta floresta, através das imagens que trouxe reveladas pelo cipó.”

 

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Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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