Assuntos

Mestre Brasília trouxe a capoeira para São Paulo

Sopa e papos de terça-feira com um amigo mestre de capoeira.

por Adolfo Caboclo, 30 de abril de 2015
,

IMG_5978

Antônio Cardoso Andrade, o Mestre Brasília… o conheci em um curso. Na primeira vez que o vi, fiquei encantando com sua postura – pura elegância tupiniquim. Ereto, delgado, polido, sempre fazendo comentários sábios – e foi natural, dentro do meu limitado repertório, pensar que “esse cara tem uma elegância parecida com a do Paulinho da Viola”. Depois, descobri que o Mestre Brasília, assim como Paulinho, nasceu em 1942. Nesse ano também nasceram Muhammad Ali e Ademir da Guia, que dispensam elogios sobre suas posturas em seus respectivos esportes. Me pergunto se ainda “fabricam” homens com tanto garbo assim, homens como os da “safra de 42”.

No primeiro dia do curso em que conheci o Mestre, me apresentei para a classe falando que eu gostava muito de desenhar e então, no final da aula, o próprio me perguntou se eu poderia fazer uma animação sobre alguns movimentos da capoeira. Prontamente estufei o peito e disse “sim”! Isso já faz quase um ano. Consegui produzir algumas dezenas de desenhos nesses dias corridos, mas nada que se compare aos milhares de que ainda preciso para produzir um stop motion honesto.

Se por um lado, o processo de criação de uma animação sobre os movimentos do Mestre Brasília seguem vagarosos, por outro, o meu conhecimento e admiração sobre a pessoa que ele é cresceu enormemente. Muito por causa de livros e documentários que falam sobre ele. Muito também por causa dos comentários que escuto de amigos que fazem capoeira – “nossa, você conhece o Mestra Brasília” -, mas principalmente pelas noites de terça-feira em que vou com ele e meu amigo Maurício tomar sopa em uma famosa padaria da Vila Madalena. Foi lá que descobri que foi ele, junto com o Mestre Suassuna, que trouxe a capoeira para São Paulo. Talvez por isso, apesar dele nunca ter dito, não seja difícil reparar que Brasília observa algumas rodas de capoeira contemporânea com os mesmos olhos em que Cartola observaria o show do Jeito Moleque.

Brasília, como gentleman que é, escuta todos com enorme atenção. Em nossos papos, dificilmente expressa certezas absolutas. Certa vez, em uma discussão sobre política, ele comentou: “você tem certeza sobre isso? Como que vocês, que são da geração da internet, podem falar algo sem ter certeza?” Mais que isso, Brasília é um “mestre” que entende que sua sabedoria está em saber que ainda existe muito o que aprender. Ele faz regularmente aulas de violão e de palhaço. Como meu pai sempre me disse, “nada é mais bacana do que um homem sábio e humilde. Que sabe que pouco sabe e sempre aprende com os outros”.

bigPhoto_0

Foi assoprando a minha sopa das terças, que fumaçava em meu rosto em uma noite nem tão fria assim, que entrevistei o Mestre. Confira:

Não Só o Gato: Pergunta de “um milhão de dólares”: como você aprendeu capoeira? Na sua terra natal, Alagoinhas?

Mestre Brasília: Na realidade, eu não descobri a capoeira em Alagoinhas. Eu descobri a capoeira em Salvador. Através de uma briga que eu tive com um amigo meu, nessa época eu trabalhava transportando água.

Eu fui de Alagoinhas para Pedrão com 6 anos de idade, uma cidadezinha lá da Bahia, e com 13 anos de idade eu fui pra Salvador. Transportando água. Fui várias coisas, trabalhei vendendo pão na cabeça, carregando mala no ponto de ônibus pra ganhar uns trocados. Eu fui pra estudar, e lá terminei não estudando, trabalhei.

Como na verdade eu fui filho de mãe solteira, eu tive que me defender. Porque o preconceito era muito enraizado lá. Filho de mãe solteira, todo mundo quer bater. E eu era um cara que brigava muito na época, pra me defender.

Na época, tinha um amigo que também transportava água: nos desentendemos e acabamos brigando por coisa boba. Aí ele me bateu pra caramba e eu não acreditava, naquela época, que alguém fosse fazer isso comigo. Com alguém do meu tamanho. O que ele fez foi um negócio inédito pra mim e depois que nos separamos eu perguntei “como você conseguiu fazer isso comigo”. Ele respondeu, “eu faço capoeira”.

Aí eu comecei, com 14 anos, a não tirar da cabeça que “tenho que aprender capoeira”. E eu só fui descobrir realmente, começar a fazer capoeira, com 19 anos. Foi quando eu encontrei o Mestre Canjiquinha, numa festa, em que ele fez uma apresentação. No final ele brigava com mais ou menos 5 pessoas e eu falei “é isso que eu quero”. Então eu comecei a praticar com ele.

Não Só o Gato: E então você veio aprendeu e veio pra São Paulo?

MB: E aí, com 25 anos, eu vim pra São Paulo. Pra trabalhar.

Trabalhava como pedreiro e então passei a dar aula de capoeira. Eu e o Mestre Suassuna, fundamos a academia chamada Cordão de Ouro, no centro da cidade. Isso foi nos anos 60.

Eu fiquei um tempo junto com ele e então saí da sociedade e abri uma outra academia chamada São Bento Grande. Hoje eu tenho uma academia que leva o nome de Capoeira Ginga Brasil.

Eu e Mestre Suassuna separamos. Sem briga. Ele hoje tem mais de 50 mil alunos, e nós somos amigos. Eu viajo pra dar palestra também com o grupo dele, tanto fora do Brasil, como aqui no Brasil.

Já fui pro Japão. Viajei dois anos seguidos pra lá. Fui pra Coréia, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Espanha, Inglaterra, China…

NSG: Existe algum país em que o pessoal fica mais boquiaberto?

MB: Todos os países ficam encantados. Capoeira é um negócio mágico. Quem já é envolvido fica mais encantado ainda, quando você chega e fala mais sobre o assunto. Até mesmo no Brasil, as pessoas ainda tem um certo preconceito, mas a receptividade é muito boa. Tem lugares que o mestre capoeira é tratado como um rei. Às vezes o mestre capoeira é que não sabe aproveitar as oportunidades que a vida lhe oferece através da capoeira.

NSG: Me fala um pouco da diferença entre a capoeira de hoje e a da Bahia dos anos 60.

MB: Teve uma mudança radical. Hoje, mesmo alguns grupos tendo trabalhado pra resgatar, não volta ao que era.

Resgataram, grupos que se chamam angoleiros, por exemplo. Eles tentam resgatar, mas o resgate que eles fizeram não começou como eles deveriam começar.

Ele fizeram um resgate fazendo frente a uma outra capoeira – capoeira d`angola e capoeira regional. E hoje, além da capoeira d`angola e capoeira regional, existe a capoeira contemporânea. É uma capoeira mista dos dois. Que não é nenhuma das duas.

Eu aprendi a capoeira mais para a d`angola, mas eu não sou um angoleiro. Eu sou um capoeirista que tento jogar angola, regional e o que não é nem angola e nem regional (risos).

Essa mistura começou na década de 60… 70. Começou essa mistura e vem proliferando. O pessoal inventando coisa. Inventando movimento…

A capoeira cresceu, inchou. Eu sempre falo que devemos dar valor ao jogo da capoeira em si. Porque os caras, inconsciente, jogam sozinhos. Então não tem aquela coisa de ataque, defesa, contra-ataque. Fica só um longe do outro, soltando movimento, sem interação. Na realidade não deixa de ser capoeira, mas não é um diálogo. É cada um “falar” sozinho. Então quando se fala de resgate. Isso deixou a desejar.

Tem uma frase que diz que “toda conversação é uma luta pelo poder”. O político, quando fala, quer mostrar poder. A obrigação do político é ter uma fala forte, não pra ele, mas pro povo. O capoeirista não joga pra se auto afirmar, ele joga para valorizar a capoeira.

O auge da roda é quando você tem ritmo, quando você tem a função expressiva do ataque, defesa, contra-ataque. Tem o respeito, a roda. Porque não é uma luta de verdade. É uma roda, apesa de ser eficiente e violenta.

NSG: Mas também pode ser usada como luta…

MB: Sim, ela é poderosíssima, mas a roda é uma apresentação. É uma troca de conhecimento. Mas como o cara quer aparecer, então ele sai atropelando, vira algo competitivo.

NSG: Mestre, além do seu lado capoeirista, também tem seu lado músico, né?

MB: Tem muita música que eu canto que não é da minha autoria. É da minha irmã, falecida. Mas de repente eu comecei a compor muita coisa. Capoeira, samba. Samba de roda, que deu origem ao samba que tem hoje.

Comecei a fazer música pro maculelê, pro cafezal. Pro cafezal eu tive que fazer como fazem os caras de samba enredo. Tive que pegar livros, pesquisar, pra assim poder falar do café em música. Você sabe que no café o cara pegou um cabinho lá na Guiana. Roubou um galhinho e trouxe pro Brasil pra plantar: Café de Sinhá essa música.

No maculelê eu fiz uma música em homenagem ao Popó.

NSG: Mestre, eu fico impressionado com o número de cursos que você faz…

MB: Acho que saber não ocupa lugar, então eu faço aula de ritmo, estudo teoria, estudo violão, que é pre você poder passar melhor o que você sabe. No caso do curso de palhaço, eu sou muito rígido, muito sério nas minhas aulas. Então eu tento através do palhaço mudar.

Acho que a gente precisa se esforçar pra mudar pra melhor. Pra pior, não precisa fazer nada.

Estou fazendo coisas que pra mim é difícil. Na capoeira, não é que eu tenho talento, é que eu treino, me esforço. Então, tenho que sempre trabalhar tudo isso.

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

More Posts

Comentários