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Guerreiros desarmados

por Estela Marcondes, 10 de fevereiro de 2014

1Entre o Sono e Sonho

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

foto 3Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, em “Cancioneiro”.

Algumas pessoas me perguntaram sobre meu sumiço em janeiro. À parte do sentimento bom, talvez com um quê de satisfação de carência por terem notado a minha ausência, foi engraçado reviver certa “preguiça” que vez ou outra me pegava durante a graduação, quando alguém queria saber: “Afinal, que raios é esta tal Terapia Ocupacional?”. Isso tem acontecido de novo quando tento explicar o sumiço, dizendo que estava no programa “Guerreiros sem Armas”.

“Guerreiros sem Almas?”, “Guerreiros sem Asas?”, me perguntaram. Não. Tentar explicar que se trata de um programa intensivo vivencial de formação de jovens em liderança e empreendedorismo social, mas somente isso não tem sido eficaz para saciar os curiosos. Motivo justo e dívida paga: o sumiço este tempo todo estava virando matéria!

Foram 32 dias intensos. MUITO intensos. Dias que começavam antes das 7 da manhã e acabavam, em sua maioria, mais de meia-noite. Dias que valeram uma picada de aranha, uma virose e um tantão de coisas boas que teriam valido até uma mordida de dromedário se fosse preciso. 32 dias que, na verdade, começaram bem antes.

foto2

Fiquei sabendo do programa no início do ano passado, através de uma amiga da UNIPAZ, que já era “guerreira”. Logo de cara me desinteressei em participar do processo seletivo ao saber que o primeiro requisito seria criar um blog. Além da minha considerável aversão digital, outras questões martelavam em mim: “Se é preciso criar um blog, este programa deve ser elitista e inflexível”, “não faço coisas no meu dia a dia para ficar me exibindo”, “será alguma coisa assistencialista ou será que desresponsabiliza as pessoas e governos das comunidades nas quais atua?”.  Dentre outros questionamentos que explicitam, na verdade, nada mais do que minha própria arrogância, e a velha mania de rejeitar uma coisa e criar verdades sobre ela antes mesmo de conhece-la de fato.

Sabe aquela comida diferente na sua infância, que você passou anos dizendo que não gostava e não queria nem chegar perto sem ao menos ter experimentado? Aí, um belo dia, você prova um pedacinho e já não sabe dizer por que não fez isso antes. Pois foi exatamente assim que me senti quando fui entrando em contato com a Filosofia Elos, na qual o programa se baseia, e com outras pessoas que estavam no processo seletivo. Por sorte, ainda era tempo e iniciei o “Caminho do Sim”.

Após uma trajetória de alguns meses, com diversas tarefas cujas ações correspondentes eram postadas no tal blog, recebi o esperado “SIM” e estava selecionada, juntamente com outros 59 participantes de diversas partes do mundo, para o “Guerreiros sem Armas”. Gente de todo canto: um índio Manchineri do Acre, gente da Índia, Guiné-Bissau, Zimbabwe, África do Sul, Portugal, Holanda, Inglaterra, Espanha, Colômbia, Argentina, Bolívia, Bélgica e até de um país menor que minha querida Pindamonhangaba, chamado Lichteinstein.

foto 4

 Mana, nosso índio Manchineri, em sua rede. Sua alternativa confortável e fresquinha para a cama do alojamento. Mana, nosso índio Manchineri, em sua rede. Sua alternativa confortável e fresquinha para a cama do alojamento.

Foi assim que no dia 6 de janeiro foi iniciada uma jornada (sem volta) de imersão, inspiração e aprendizagem. Nosso alojamento ficava em Santos, bem pertinho do estádio de futebol. Quase todos os dias, partíamos de ônibus emprestados pela prefeitura para atuar nas comunidades ou para vivências do programa em outras partes da cidade. O desafio era aprender ferramentas para impulsionar o movimento de fazer acontecer JÁ o mundo que todos sonhamos.

Ok. Talvez você questione neste momento: “mas o mundo que eu sonho não é o mesmo que o mundo que você sonha”. BINGO. Exatamente isso! Pela experiência prática, o programa busca oferecer a cada participante meios para propor soluções e desenvolver projetos conjuntos com suas comunidades, cidades, regiões e países, que se relacionem aos desafios sociais, ambientais e econômicos, respeitando a identidade própria de cada povo ou comunidade. Por isso mesmo que algumas das atividades que acontecem por lá também são voltadas para a reflexão interna de cada pessoa e conhecimento de si própria. Assim, além da atividade nas comunidades, as 240 horas do GSA contemplam palestras temáticas, eventos abertos e atividades baseadas na pedagogia indígena que convidam os jovens a exercitarem as qualidades dos 5 elementos (Terra, Água, Fogo, Ar e Nhanderekó) e no Jogo Oásis, uma ferramenta de apoio à mobilização cidadã, criada pelo Instituto Elos, para a realização de sonhos coletivos.

foto 8 foto 7 Guerreiros sem Armas na comunidade Caminho da União, em Santos. Conhecendo sonhos, talentos, recursos e belezas da comunidade para ajudar a concretizá-los juntamente com a população. Guerreiros sem Armas na comunidade Caminho da União, em Santos. 

Fiquei impressionada com o cuidado da equipe com os guerreiros, desde o material didático até a forma que eles criaram para dividir os 60 nos quartos, da forma mais misturada possível, mas respeitando barreiras de linguagem. Nestes dias, além de colocarmos as mãos na massa nas comunidades nas quais atuamos (Vila Progresso, Prainha e Caminho da União), nosso aprendizado passou pela comunicação não violenta, danças circulares sagradas e jogos cooperativos. Toda a Filosofia Elos, que alimenta a formação dos Guerreiros, envolve 7 passos: O olhar, o afeto, o sonho, o cuidado, o milagre, a celebração e a re-evolução. Foi assim que de forma divertida, intensa e muito presente, fiquei ausente do NSG. Após esta “breve” introdução, fica a dica: não perca a cereja do bolo na semana que vem. Parte 2 desta matéria, com entrevistas, na próxima segunda!

Estava com saudades…

Nossa coluna de segunda está de volta!

foto 9Fotos Oficiais “Guerreiros Sem Armas” / Fotógrafos Paulo, Otávio e Eliza

 

Estela Marcondes

Estela Marcondes é Terapeuta Ocupacional, acompanhante terapêutica e encantada pelas "linguagens" do mundo, além da verbal. Algumas vezes pensa que a palavra foi inventada por alguém que estava com preguiça de usar os outros sentidos para dizer como se sentia. Adora LIBRAS, dança, trabalhos manuais, música, observar demonstrações explícitas de carinho e elefantes!

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