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De um tempo que a grana que o tem já não conta

Propõem ao senhor, de graça o copo de água, para adiar a sua sede e retardar a decomposição completa.

por Flavio Lobo, 30 de julho de 2020
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Do futuro a imagem na tela, ela se esfarela, uma bagagem que o traz por inteiro, repleta de dinheiro, e o senhor engravatado oferece tudo que o tem por um copo de água, todos os dias, ele volta e diz que podem ficar com o troco. Roda a cidade, seco, pouco a pouco se esfarela, e nela, em todos os cantos, as respostas são idênticas, dizem que os tempos mudaram em relação à grana, perguntam a quem ele ama, a água da sede representa escassez do que não é mera grama.

Banalizaram tudo o que dá em árvore por muito tempo, e hoje ele corre atrás das sombras com as sobras que traz na bagagem que o carrega, oferece a herança a quem não carece dela. Propõem, porém, ao senhor, de graça o copo de água, para adiar a sua sede, como vício, e retardar a decomposição completa, pois sendo secura de alma, decerto não há remédio para o deserto, tampouco nascente suficiente. Ele está ciente, mas contradiz toda uma vida, não que não acreditasse na Deusa das águas, o senhor engravatado apostava na evolução do concreto mas não em paralelo, não em conjunto, assim ele fortalecia uma identidade, a sua individualidade. Convencia a si próprio do que fosse mais conveniente, conivente ao sentido que o guiava.

Ele ainda perdura mais pelas benevolências hídricas do que pelo patrimônio que o tem, apegado ao fato consumado em concreto, edifício palpável sem água nem plantas. Ele quer implementar novas medidas nas reuniões de condomínio, mas os vizinhos já estão esfarelados e ninguém nunca mais se interessou pelos apartamentos devido ao histórico dos antecessores. Tudo se decompôs ali, o nosso herói é histórico sobrevivente, orgulho da família cremada à vista na época, agora as cinzas mudaram, a secura o esfarela e não há cura para a amargura, desidratação constante pela falta de acesso à água, a região está escassa de vital elemento, e o papel outrora majestoso dinheiro, ali já não canta, nada mais se dá pela compra.

Há tantas ele anda pelas mãos dos irmãos de água que se estendem, e do ar que lhe tem piedade e também o faz caridade. Até as plantas que nunca morrem secaram da convivência intensa de tantos anos sem contrapartida. A sua região mudou muito, e pouco a pouco até ela se esfarela na antevisão da tela.

 

"Formas únicas de continuidade no espaço" (Umberto Boccioni, original em gesso, 111,2 x 88,5 x 40cm, 1913)

“Formas únicas de continuidade no espaço” (Umberto Boccioni, original em gesso, 111,2 x 88,5 x 40cm, 1913)

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