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Em busca da lira

Não há escudo que possa deter uma falta de amor que nos invade.

por Flavio Lobo, 25 de junho de 2020
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“O momento atual está roubando o nosso lirismo”, disse o entrevistado. “Sim, respira… É a nossa lira!”. Essa frase, vinda dele, a quem tanto admiro! Nosso respiro, o lirismo, não é possível. A afirmativa, de quem sou leitor há anos, desde seus tempos na Folha de São Paulo, em mim ecoa. Não! Seu ponto de vista, exposto na entrevista, me deixou atônito. Perco o sono, por qual razão? Façamos um exercício de imaginação, você que lê o leitor.

Imagine, se habitássemos todos o mesmo local. Supondo… E que nesse local, as pessoas pudessem se armar! Sim. Não se amar e que suas armas fossem falsas palavras (quase mascaradas). Tais palavras proferidas, por feridas disparassem, desenfreadamente, sem análise prévia ou distinção de alvos. Já pensou? Assim sem critério, alvejando florestas e seus animais, mares e rios, estudantes e professores, médicos, cientistas, índios, formidáveis artistas. Pesado, não é?

Ainda nesse exercício, imagine hospitais invadidos. Hospitais quase invisíveis onde supostas vítimas de palavras traiçoeiras, palavras contagiosas, pandêmicas, polêmicas, camufladas ali padecessem. Vítimas quase invisíveis também, incalculáveis, impossíveis de mensurar, estimadas porém imprevisíveis, vítimas de cartuchos de palavras nunca reveladas, sem vacina preventiva, não há escudo que possa deter uma falta de amor que nos invade. Imagine só, invadir tal hospital, reivindicando direitos de seu próprio senso moral, ignorando a ética social e fossem surpreendidos – veja, os donos das palavras –, por pacientes enfermos em estado grave, que repousam, baleados por repulsa, por quem leva cartucheira na cintura, imagine a conjuntura!

Agora, as armas que portam importam a quem a utiliza por legitima fragilidade. Ela se rebela contra todas as estruturas que a açoita. Os monstros vem à tona e com eles se brinca de caça. A presa tem que ser presa, e com pressa, ora, esses vagabundos impregnando o mundo. O mundo gira e eles não caem, estamos todos em uma planície cheia de irregularidades. Do outro lado, onde inventaram a mazela, o interesse dela é descarado! Precisamos elimina-los, um a um, com a nossa metralhadora de cartuchos hostis e inesgotáveis, da qual tanto tentam nos privar, ainda que esses monstros terríveis sejam nossos próprios frutos, meu filho…

Imagine se fosse verdade, esse enredo! Não seria brinquedo, não é mesmo? Mas ainda que fosse, fazendo de conta, o nosso lirismo com todo perdão, ele não. Ele nunca!

"Queremos Barrabás" (1850, óleo sobre tela, 1,60 x 1,27m) - Honoré Daumier

“Queremos Barrabás” (1850, óleo sobre tela, 1,60 x 1,27m) – Honoré Daumier

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