Assuntos

Membro do Picasso

Um carro maltratado e suas rolas voadoras

por Flavio Lobo, 1 de dezembro de 2014
,

Provisoriamente, após longos meses, meu possante reencontrou um teto, recuperou a dignidade. Retornei à origem, ao cordão umbilical, em virtude de uma cirurgia que me abalou o maxilar, desmoronou minha autonomia. Minha mãe voltou a me alimentar, me concedeu uma vaga do edifício, que possui tal infraestrutura, e devido ao apego que ela possui ao lar, de fato pareceu que retornei ao seu ventre. Já o carro, precisou de aulas de boas maneiras, mas logo foi seduzido pela sombrinha, pelo conforto, a carência o assola desde que a grana ficou curta para o seguro e outras futilidades.

Ele vive a céu aberto, exposto às intempéries, sob lua e sol, um morador de rua, predomina álcool em seu estômago, mas nunca o bastante para sacia-lo. Os pneus asmáticos superaram os pregos do caminho, perderam os cabelos, acusaram o baque, são anos de aderência às ruas. Com sequelas, esmurcecheram-se, agonizam mas não morrem. Respiram por aparelhos, os coitados, a sobrevida da calibragem, o alívio fugaz do inevitável. A morfina deles.

Meu carro é vermelho e vive no Paraíso, o país das maravilhas, em uma confusão surrealista de poeira e pênis com asas. Essa seria a imagem! Pudesse eu eleger um símbolo, com a finalidade de representar o tempo que habito o bairro, neste curto tempo, em experiência como um proletário no estágio, a escolha seria não mais que essa, que emoldura as janelas do automóvel. Uma gravura fálica.

À sua maneira, a zombaria incessante que o persegue também ganhou asas, com carradas de razão. Soa meio pornográfico pela ambiguidade, mas eu me sinto o próprio, O cara de pau, por ser o condutor, responsável pela divulgação do que me pregaram, parece que pago por uma aposta perdida.

Naquela loja de álcool, o primeiro posto BR da 23 de maio, para quem viaja com destino à Interlagos, logo após a entrada da 9 de julho, o frentista já conhece meu carro e não é pela placa. Ele ri do seu cliente, acena com piadas preconceituosas, mas por fim me concede o privilégio do respeito pela bandeira. Um cacete com asas, quem diria, também exprime um viés bélico pela causa. O frentista, esse sim, possui um membro no nariz, e eu nunca vi o seu carro. Ainda pior do que ter o aspecto do veículo como a extensão da personalidade!

O reflexo da imagem da janela do meu carro com rodas, e o pinto voador ganhou os céus, tornou-se marca, parece que sorrateiramente penetrou o vidro feito tatuagem, de modo que não há lavagem no mundo que o aniquile. Eles estão no anúncio da web motors, o proprietário posterior deve reconhecer o que herdará, como quem se casa com uma mãe solteira.

O Pinto com asas simboliza a minha displicência comigo mesmo.

E ele ereto, da extremidade oposta, atinge a rua Bernardino de Campos, no meu percurso de volta para casa, e ao concluí-lo brinco de Hemingway, viajo que o Paraíso também é uma festa, e a vida uma chacota súbita e indecifrável.

foto 1

Comentários