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A música que era nossa

Das paixões de quem nunca foi um gênio da música.

por Caio Blanco, 21 de janeiro de 2015
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Eu amei pela primeira vez com seis anos de idade. O nome dela era Pamela e o dente da frente dela tinha acabado de cair. O meu nem estava mole. Ela era muito precoce, a Pamela — e eu estava um ano adiantado na escola. Eu me apaixonei por ela porque, no dia em que fomos ao zoológico com a Tia Gisele, ela dividiu comigo o Fandangos sabor presunto, que na época era meu salgadinho favorito. Depois foi o Cebolitos. Depois o Baconzitos. E depois cansei de salgadinhos. Eu costumava imaginar nós dois em um encontro perfeito: ela vestida de saia verde-água, de mãos dadas comigo, e nós dançávamos e levitávamos acima dos ônibus e dos carros da rua, voando em alta velocidade. Acho que, no fundo, eu só queria saber voar. E, pela oportunidade, imaginei que ela pudesse ser uma boa companhia. Eu sonhava com ela ao som da Música da Mônica, dentucinha e sabichona, porque eu tinha uma mochila do Cebolinha que a Pamela adorava. Eu sempre fui assim, descolado.

Depois, eu amei com sete anos e meio. O nome dela era Karine e tinha acabado de se mudar para o colégio. Eu gostava da Karine porque ela tinha cabelo multicolorido, meio loiro, meio castanho; e também porque ela era a menina nova. Todo mundo gosta da menina nova, não importa se ela é bonita ou feia. A Karine sempre foi bonita e depois virou um mulherão, quase areia demais pro meu caminhãozinho se eu não fosse um cara assim, tão legal. Costumava imaginar-nos de mãos dadas no recreio, em frente a todo o colégio, inundado pelo mágico som do balão mágico. Estávamos na alturas, eu e Karine, em um mundo bem mais divertido do que aprender frações. Eu ainda queria muito aprender a voar. A Karine já passava maquiagem. Meninos demoram mais para crescer mesmo.

Com dez anos, apaixonei-me perdidamente pela Mariana. Ela era uma menina linda, loira e de pele morena. Nós íamos dançar Grease na apresentação do colégio para o dia das Avós e eu só queria ser o John Travolta da Olivia Newton-John dela. Ela, por ser a menina mais bonita, abocanhou de cara o papel da protagonista. Decidiram fazer uma votação para escolher quem faria o seu par romântico. Eu passei longe na votação, quase lanterninha. Escolheram também um menino loiro, alto e bonito, reconfirmando os paradigmas que iriam me perseguir pro resto da vida. Era quase uma profecia da exclusão estética, que anos mais tarde impulsionariam minha anorexia de dois meses. O nome do menino era Rodrigo e eu nem consegui ficar bravo com ele porque ele era um cara gente boa, o mais popular da casta do ginásio e, coincidentemente, meu melhor amigo. Cantamos e dançamos Summer Nights e eu só engrossava o coro do “tell me more, tell me more”, enquanto ficava boquiaberto o resto da coreografia seguindo com os olhos os quadris da Mariana. Mas eu era o único de jaqueta de couro caramelo, propriedade da minha mãe, e fui destaque quando dei uma estrelinha no centro do palco. Eu sempre fui bem descolado.

Na oitava série, amei seriamente a Luciana. Ela era uma das garotas mais inteligentes do colégio e tinha pegado todo mundo de surpresa quando voltou das férias de final de ano com um corpo escultural. De gordinha nerd, passou a ser a mais cobiçada da turma. Eu sempre gostei dela, mesmo antes das férias de fim de ano. Mas ela chamou muita atenção, incluindo a atenção do Lorenzo, que era o menino mais popular da casta pré-colegial. No aniversário de quinze anos da Larissa, que foi o primeiro aniversário de quinze anos que fui na vida e também a primeira vez que tomei batida de maracujá (paixão alcólica inegável que perduraria até os dias de hoje), eu estava com as maiores esperanças de dar meu primeiro beijo. Meu primeiro beijo com a Luciana e também meu primeiro beijo da vida. O Lorenzo foi mais rápido. Quer dizer, o Lorenzo foi só o Lorenzo, e ele era mais paquitão e intuitivamente mais bonito do que eu com treze para quatorze anos. Quando subi na pista de dança, estavam os dois aos beijos. A música de fundo era Wherever you will go, do The Calling — que foi o CD que eu tinha pedido no amigo secreto. Eu e todo mundo da oitava série B. Foi a primeira vez que sofri com trilha-sonora, enquanto descia choroso os degraus da festa murmurando um “if could, then I would, I’m going wherever you will go”.

Durante o colegial, eu só amei uma. O nome dela era Carolina. A Carolina era a menina mais bonita do mundo para mim e, como todas as histórias ente meninas bonitas e meninos inseguros, ela era uma das minhas melhores amigas. Eu amei a Carolina até pouco tempo atrás. Acho que ainda a amo um pouco. É um daqueles amores que não passam porque nunca foram sanados, externados de verdade, tocados ou sequer sentidos como deveriam. Apenas maturados. Internamente. Quase marinados no suco gástrico da minha alma. Eu costumava ouvir Brighter than sunshine antes de dormir, com as mãos segurando o pescoço, pensando na Carolina. Fazia tanto sentido: “I never understood before, I never knew what love was for”. Foi a primeira vez que amei com trilha-sonora.

O primeiro beijo de verdade aconteceu com a Bruna. Eu estava bêbado em uma balada que entrei portando um RG falso do meu melhor amigo. Façanha hercúlea essa, já que eu era um menino de dezessete anos com cara de menina de treze. Eu não lembro a música que tocava porque ela era alta demais e eu tendo a ignorar na minha vida tudo aquilo que é gritado. Além disso, estava mais concentrado em fazer a Bruna não perceber que aquele era meu primeiro beijo. Meu primeiro beijo da vida com dezessete anos. “Tell me more, tell me more, did she put up a fight?, Ahá, uhun, ahá, uhun.

Mais velho, amei Alice, Thamires, Juliana, outra Carolina. Todas lindas. Todas areia demais para o meu caminhãozinho não fosse eu assim, esse cara tão legal e descolado. Elas, amei com Gil, com Caetano, com Cássia, com Bethânia, com Gal, com Chico. “É uma índia com um colar, a tarde linda que não quer se pôr” era a música da outra Carolina, que só ouvia música brasileira e só usava anél de côco. “Não adianta nem me abandonar, porque mistério sempre há de rolar por aí”, eu cantarolava quando o coração apertava e eu precisava sonhar.

Então, amei meu primeiro namorado e acho que foi a primeira vez que amei de verdade e percebi porque a Juliana, a Carolina, a Alice, a Luciana, a Thamires e tantas outras pareciam tão incompletas ao meu sentimento. Arrogância essa minha da incompletude dos meus pares femininos. Meu coração é que pedia o encaixe de uma outra dinâmica que a minha pré-adolescência provinciana não me permitia atinar. A nossa música era Meet me halfway, do Black Eyed Pees. Era brega, mas fazia sentido para nós, que devíamos ter bolado uma história bonita para justificar o lugar comum da música. Quando brigamos pela primeira vez, ele me ligou de uma festa da praia com essa música tocando ao fundo. Entendi o que eram aquelas pernas bambas e o sentir a pele do peito derreter um pouco de tanta quentura, todas sensações sobre as quais eu nunca tivera conhecimento. No fim, nós não conseguimos nos encontrar no meio do caminho: eu fui demais e caí no precipício. Ele sobreviveu em terra-firme. “Right on the borderline, that is where I am going to wait, for you”.

Troquei o tom meloso do amor sentido pela batida dos Strokes, Artic Monkeys, Killers, Hot Hot Heat. Dançava até às cinco e no refrão do “open up my eager eyes” eu descia até o chão de joelhos, com os braços abertos e voltava imaginando que voava como uma águia, não sei também o motivo. Ainda queria saber voar, eu acho. Eu fazia isso desde os dezessete anos: essa mesma rotina de dança cantando Mr. Brightside, imaginando que me libertava das amarras fictícias desse amor gostoso que nunca aparecia. No fundo, a rotina de dança era apenas metáfora para a dança de verdade que eu esperava fazer com o meu par. E já estava tudo ensaiado na minha cabeça:

Vamos ser um daqueles casais que começam a dançar no meio da pista de dança de forma envergonhada mas, depois de olharmos muito um no olho do outro para nos encorajarmos a não sentir vergonha do ridículo, com aquela cumplicidade rara hoje em dia, começaremos passinhos coordenados e de mãos dadas. A dança será natural, quase que como se não tivéssemos ensaiado nada. Mas nós vamos ser sim um daqueles casais que ensaiam uma coreografia de dança na sala do apartamento com uma taça de vinho na mão. Você com uma taça, eu segurando a garrafa, porque eu vou ser mais largado do que você, que vai ser um daqueles meninos cultos e bem-educados, porém nada pretenciosos, mais ou menos parecido comigo, que na verdade vou estar com a garrafa na mão apenas para fingir um desprendimento que eu não possuo. E você vai saber disso e vai ignorar o fato para evitar que eu faça papel de panaca. Quando pegarmos no ritmo da dança, vamos dar um pequeno show particular e fazer as pessoas ao nosso redor pararem para bater palmas e nos olhar enquanto mostramos ao mundo essa nossa conexão quase mágica. Algumas pessoas que não nos conhecem também vão parar e apontar. Quando terminarmos, vamos receber o olhar carinhoso dos amigos mais próximos que vão saber que nós somos assim mesmo, meio maluquinhos, perfeitos um para o outro, enquanto balançam a cabeça em sinal de risonha inconformidade. Quando formos pegar uma bebida juntos no bar, vamos ser abordados por duas garotas que vão nos dizer o quanto nossa dança foi incrível e que somos o casal mais bonito da festa. Eu vou sorrir encabulado e soltar um “imagina” entre risos calculados. Você também vai agradecer e nós vamos ambos fingir aquela humildade que não possuímos porque, no fundo, sabemos que somos mesmo o casal mais bonito dali. E, de repente, começará a tocar Kiss me, que foi a música sob a qual eu sempre sonhei em dar o meu primeiro beijo e quando o refrão chegar, bem no clímax, você me beija e eu finjo que aquele é mesmo o meu primeiro beijo, sem o choro do The Calling, sem a angústia de ter que encontrar alguém que nunca chega no meio do caminho, sem a desesperança dos amores que nunca foram guardados para mim. E quem sabe eu encontre finalmente essa música que é a nossa, porque até agora toda essa rotina de dança, esse balé, todo esse futuro que ainda vai acontecer, eu imagino sem uma trilha sonora específica. E, como todas as coisas inexplicáveis da vida, sei lá, se eu encontrar a música, vai que as coisas se acertam, vai que é só do que eu preciso.

Então, meu bem, mantenho a coluna ereta e os ouvidos bem atentos para ver se um dia eu vou ouvir essa música. Para eu ser menos sabichão e dentucinho, para eu ir onde você for, para eu ultrapassar o meio do caminho, para eu sentir-me mais claro que a luz do Sol e para eu dizer mais, dizer mais, te contar muito mais coisas. A música do meu — do nosso –, finalmente, primeiro beijo de verdade.

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Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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