Assuntos

O mergulho e a baleia

Uma caminhada da areia ao mar.

por Adolfo Caboclo, 10 de setembro de 2018
, , ,

Observei meus pés. Minhas unhas estavam brancas, polidas pelos montinhos de areia da praia – especialmente destacadas graças à cor de jambo que o tostar do sol havia me proporcionado. Com alguns passos sentia o calor dos grãos em minha sola enquanto uma brisa salgada brincava com meus cabelos. Após andar por instantes, começava a sentir as primeiras marolas na canela.

Quanto mais me atirava no enérgico verde do Atlântico, mais um frio me tomava a espinha e no instante que todo o ardor do tostar do sol desapareceu, me dei conta que estava completamente submerso. Olhos fechados, pulmões estufados e bochechas infladas.

No instante que abri meus olhos, não os senti salgarem. Pelo contrário: era possível ver claramente areia e conchas quebradas. Percebi que já estava muitos metros submerso e, bem na minha frente, uma enorme baleia flutuava me encarando. Fragilizado pelo medo, pelo seu rosto tantas vezes maior que meu corpo, tentei escapar. Perdi o fôlego. Sua bocarra acertou meu abdômen. Dilacerou. Acordei gritando. Era um sonho de criança que iria se repetir algumas dezenas de vezes com o passar dos anos.

Três décadas depois – nesses dias sonolentos -, meu travesseiro voltou a se transformar em areia. Meu antigo ritual de desbravamento marinho se repetiu, assim como o encontro com a baleia.

Dessa vez não tentei fugir.

Alarguei meus ombros, levantei os braços e unhei a testa do “peixão”. Olhei no fundo de seus olhos e, independente do seu tamanho, o bicho se apequenou com o fuzilar da minha retina, com o calor do meu pulsar. Ela era maior, porém menor.

Isso tudo, um pouco antes de Fernanda me acordar. Se nos meus sonhos encarava uma fera do mar, na vida real minha companheira parecia uma tigresa. Se movimentava de forma felina. Vestindo sua roupa me convidava naquela noite de sexta-feira para irmos em um jazz.

Um jazz desses que nós íamos há muito tempo atrás. Que em textos antigos desse site – em uma época de outros valores – eu escreveria sobre seus drinks e atmosfera, mas que hoje eu gostaria apenas de falar sobre o show daquela noite: Emiliano Sampaio e Speaking Jazz Big Band.

Emiliano é um maestro que foi estudar musicalidades na Áustria. Speaking Jazz Big Band, como o próprio nome já sugere, é uma daquelas bandas do tipo que vemos no filme Whiplash, com músicos talentosíssimos que fazem solos que nos deixam embasbacados. Naquela noite, em um espaço de cerca de 100 m, um pequeno palco com dezoito instrumentistas incríveis engoliu seu público.

Enquanto eu dançava embriagado com Fernanda, o show proporcionava minha primeira brisa de LSD sem LSD. Em uma dessas infinitas metáforas que criamos da vida, vi na big band ninguém mais e ninguém menos que ela: a baleia.

E não lembrei só da baleia. Lembrei de mil maldições que me assombraram nos últimos anos; de como meu pulsar parou de produzir calor; de como fui ficando chato e sem carisma; lembrei de quase ter morrido em posição fetal debaixo do chuveiro; de terem tentado me transformar no que existe de mais deprimente no mundo dos homens e por isso – justamente por esses motivos – não quis apenas unhar essa tal baleia existencial que acabava de se apresentar. Quis unhar e transformá-la em sushi.

Agredi-lá por ter sumido por tanto tempo.

Por ter desparecido, pois eu estava sem sal. Sem tostar. Se quer merecia ser dilacerado.

Quer saber? Todas as bestas que ainda não apareceram, de agora em diante vão aparecer. Irão querer dilacerar, mas acabarão unhadas. São maiores, porém desgraçadamente menores.

 

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

More Posts

Comentários