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O tempo aqui também nos tece

A nuvem se abre em formas, não há um momento em que eu possa me distrair.

por Flavio Lobo, 9 de julho de 2020
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Da janela do quarto verde acompanho a sua formação. A nuvem acaba de se decidir, após súbita dilatação (em movimento de dentro para fora), ela moldou-se urso. Mas, justo um urso você vê, podem dizer, como o animal emerge da nossa terra, da nossa lama, sendo tão pesado? A consciência leve o torna alado, sua forma só se deforma com o sopro do vento. Ele não habita somente onde transita, há nuvem que o resista.

Mas, em um instante, já era nuvem gato o seu novo retrato, aliou até alguns bigodes ralos. Veterano o gato, que diz (o ouço como na concha), “no meu tempo podia se repousar na identidade”. O gato reclama, “hoje, um sopro me desmancha”, “não se pode ter sossego no céu”. Logo, o gato volta para o seu muro. O céu parece ficar escuro, formando um vagalume (a nuvem tapa o sol).

Justamente quando ele mais brilhava… Há sempre uma nuvem de passagem para ofuscar o fenômeno que nos raia. Não há um momento em que eu possa me distrair. Da janela vejo um invocado vagalume, que era gato, e ainda antes, urso. O tempo segue em curso. As nuvens parecem estáticas, em harmonia estética, mas na verdade, há poucas janelas para muita gente, me debruço quase solitário em privilégio contemplar. É o sol por trás do bojo de pluma, a persistente fagulha, o que vasculha, vagalume? Mas logo a nuvem se abre em formas, mutável, ela foi gato porque urso, e vagalume está através das queixas do gato (de bigodes ralos).

Agora, a nuvem formiga. A temporada vagalume a reduziu a ponto de eu a ver como um ponto, de partida, com tremeliques, arredia. Pois é, o tempo não estava para brincadeira em São Paulo. O vento fazia brincadeira adoidado, as nuvens parecem a passear. A formiga, solitária, perde força, ela só prospera em comunidade. Em igualdade, consegue resistir mais ao sopro do vento. Ela poderia ser um urso, com recurso, um gato sabido, mas pelo efêmero brilho –se opondo ao sol- fez-se só.

Solitária, a formiga anda à esmo, sem missão, pois seria em vão, pela frente teria que enfrentar sozinha a cortina de fumaça. Porém, ela mal poderia imaginar que sim é possível atravessar a neblina, se safar, pois até o momento que eu estiver debruçado, ela não anda só. Aos meus olhos, um ponto conta muito. Todo sinal é bem-vindo, somos a sua água em estado sólido e muito pesado, e ainda, veja, menores que pontos. O pior é que estamos imersos, os ventos chegam até nós por outro ângulo. Eu sou formiga e urso, vagalume quando anoitece, o tempo aqui também nos tece, o que difere é o poro da chuva, a transpiração gera transformação. Toda forma é inspiração, a nuvem urso doou-se em prol da pesada continuidade, ainda que sem consciência disso (ela estava boiando). Fecho a janela como pedaço de espaço, fim e início de ciclo.

 

"La condition humaine", René Magritte (1933, óleo sobre tela, 100 x 81cm)

“La condition humaine”, René Magritte (1933, óleo sobre tela, 100 x 81cm)

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