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Quanto tempo dura, uma moldura?

Queria a moldura que fosse esplêndida e não me cerceasse a ponto que meu retrato ganhasse mais vida a cada minuto que voasse.

por Flavio Lobo, 2 de julho de 2020
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A moldura do retrato, a moldura do quadro, a moldura do espelho. A moldura do altar, meu corpo, casa, minha rua, o bairro, a cidade, estado, país, continente, planeta. O meu universo não é o universo, nem o inverso. Meu mundo não é o mundo, é profundo onde o mundo é mudo.

Quanto tempo dura, uma moldura? Moldura de madeira, moldura de mármore, de metal. Moldura de concreto, moldura de ouro, corpo, aura, atmosfera, o cosmos. A moldura do retrato da família, ancestralidade, um registro, geração. O que nos cerca, por vezes, está tão acerca. O que limita nos possibilita, quando o contorno não é somente adorno ou lhe foge a consciência do entorno.

A moldura do meu quadro do “O último discurso”, do Charles Chaplin. Descascada, desgastada pelo vento, corroída pelo tempo. As rugas dela envolvendo as combativas palavras do autor. As rusgas dele, elas são nossas também. Essa moldura é antiga, seu discurso ganhou o mundo e estava no lixo, quando o resgatei, na verdade ele me resgatou, quando o vi, e ali o li. De lá, direto para a casa, primeiro a sala, hoje, quarto (maior que ele). Até no lixão nasce flor, ouço… As palavras de Chaplin romperam o solo, atravessaram o lixo, saltaram à vista e brotaram em meio ao concreto da parede.

Proteção, adorno, as funções das molduras, a conexão com o espaço circundante, delimitam, zelam, complementam histórias que foram criadas com algum sentido que não sabemos qual. Queria a moldura que fosse esplêndida e não me cerceasse a ponto que meu retrato ganhasse mais vida a cada minuto que voasse, a cada passo que eu passasse, a cada criança que nascesse do ventre da nossa mãe. Temos em comum o berço, penso… A moldura acompanharia meu desenvolvimento, me zelaria, e voltaria comigo para a casa quando batesse uma saudade.

O limite da moldura, as fronteiras da ditadura, o cercado de um sítio, a borda da piscina, o oceano para a ilha (as águas estão caladas). O universo me suga para dentro, eu acato, o escuto, não reluto, não discuto. Por vezes, me sinto sem ar. Li um verso, eu sou livre! Antes, eu estava afogado. O ar de lá é diferente. Me entrego sem receio, a minha moldura liberta, o que me cerceia é apenas um registro, um fragmento de tempo em meio ao todo. O todo poderia ser a minha moldura também, mas a minha aura zela a casa e “O último discurso” na parede nos inspira, isso sempre. Até no lixão nasce flor, disse o Mano Brown (diz em canto). Suas rusgas são as nossas, ouço, canto, enquanto houver voz no que resta de nós. Eu queria a moldura que viesse do barro, moldar a moldura, participar do seu papel com o que fosse condizente, impermanentemente.

"Orange, red, yellow" (Mark Rothko, acrílica sobre lona, 266,2 x 206,5cm, 1961)

“Orange, red, yellow” (Mark Rothko, acrílica sobre lona, 266,2 x 206,5cm, 1961)

 

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