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Sobre a necessidade de ser de aço

Da angústia única ao interesse coletivo, estamos todos unidos.

por Caio Blanco, 13 de julho de 2015
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Quando nasceu, nasceu de cócoras, invertido. Deu de fuça no mundo ao contrário: já nasceu torto. Ainda bem que era menino. O primeiro filho tem mesmo de ser varão. Vai ser macho como o pai, sem demoras, sem delongas. Deu de fuça no mundo com o mundo ao seus pés. Homem, branco, rico. Nasceu para ser feito São Paulo: condutor, nunca conduzido. Ainda bem que era menino. Olha o pinto. Esse vai ter pintão. Mas nasceu torto, nasceu ao contrário.

Cresceu para ser logo posto na escolinha de futebol. Esse vai ser boleiro feito o pai, sem demoras, sem delongas. Tinha pernas finas, dois pés esquerdos, era ruim de bola. Não desistiu fácil. Via de longe o olho do pai brilhar quando jogava bola. “Tem que ser assim”, pensou. “Vou ficar muito bom nisso”, prometeu. Odiava. Chorava escondido antes do treino, enquanto espiava de canto de olho a aula de queimada das meninas, as piruetas da ginástica artística, todo aquele mundinho do fru-fru do balé. “É bonito, não é, mamãe?”. “É, mas é coisa de menina”. Engolia em seco o gosto da sola da chuteira. Insistiu até quebrar o braço em campo: tropeçou na própria bola. Ou no próprio desgosto, na própria culpa. Desistiu. Não dava para aquilo. Sentiu a lança pontiaguda da primeira decepção no rosto do pai. Falhou. Não deu no couro. Nasceu torto, nasceu ao contrário.

O que é que era tão encantador nos olhões azuis da Barbie? O que era tão mais sedutor que o fogãozinho rosa? “Esse é o corredor dos brinquedos das meninas, o seu é esse aqui”. Esse menino crescia estranho, tá dando mais pra ser boiola. “Não é não, mãe sabe, mãe sente, meu filho é macho. Esse é só o jeito dele”.

Que linda era a filha do casal. “Não é menina não, é menino”, respondiam os pais com insatisfeito tom. Corta o cabelo, cabelo comprido não pode, ele já tem feições tão frágeis, corta o cabelo, ceifa o mal pela raiz, corta o cabelo, cabelo comprido não pode. “Mas eu gosto”. E desde quando criança foi feita pra gostar ou desgostar? Corta o cabelo. Da dor das lanças pontiagudas do desgosto sucessivo dos pais. Que dor.

Adolescência inteira rodeado por meninas. Aniversário de quinze anos e vai ter pizza em casa. Vinte amigos. Dezoito meninas, só dois meninos. E acho que aquele ali joga pro outro time, hein? Estranho. As roupas desse menino estavam esquisitas, tudo pequeno demais, apertado demais. “Tá rebolando muito andando, não tô gostando”. Nasceu muito torto, mas estava tão desesperado por aceitação. Como se agrada? Vai lá, ser o melhor da classe. Ganhou medalha de primeiro lugar no xadrez – xadrez? -, teve a redação publicada todo ano na lista das melhores redações do colégio, foi orador da turma, passou em faculdade pública, aprendeu três línguas. Vai dar orgulho, menino, vai ser tudo aquilo que os outros querem que você seja. Bobeira. Querem que você seja macho e macho começa a ver que talvez não possa ser. Nasceu ao contrário.

Por que é que o torso daquele amigo captura tanto o olhar? Por que tomar banho no vestiário masculino é tortura maia? “Reparou que ele é mirrado? Parece que não cresce.” Parece que todo mundo é homem menos o menino com cara de criança, cabelo que começa a crescer, rosto de boneca. Nunca o viram com uma menina a tiracolo. Mas era tão mirradinho, será que aguentava o tranco? Riam. Não tinha como mesmo. Vai ver era tímido, vai ver era uma fase esquisita. Que esquisito ser assim, invertido. Não tinha jeito, não tinha saída, falta ar, acode. Acode que eu vou chorar.

Chorava.

“Quero ser bom, quero ser direito, quero ser normal, quero dar orgulho, quero ser machão”.

Chora.

Foi viajar, ganhou bolsa de estudos. O primeiro da família a estudar fora. Ele era assim mesmo. Todo mundo que é muito inteligente é um pouco estranho. É muito inteligente, era só uma fase mesmo, ia voltar mudado. Novos ares fazem bem. “Eu vou dar muito orgulho”.

Voltou mudado. Invertido e torto. Voltou com o sabor do primeiro amor na boca, proibido, sujo. Era sujo, era errado, que iam pensar? Homem, branco, rico. Ao contrário, de cócoras, nasceu para ser pedra. Dilacera a dor do desgosto com a lâmina pontiaguda enfiada no peito. Sangra. Acode. Alguém ajuda. Ninguém vê. Esse sopro do silêncio de uma absolvição que jamais virá.

Que tomada é essa da própria vida, que se faz para os outros, que se entrega em uma bandeja de prata para ser devorada pelos anseios de quem não te quer bem, mas quer-te incluso e funcional na sociedade? Vá ser engrenagem na vida, viado.

Não foi. Respirou fundo e quis ser outra coisa.

Melhor?

É a transsexual pendurada na cruz, é a travesti morta a pedradas, é o crime de ódio, é a indiferença da sociedade, é o Congresso que anda para trás, é o repúdio da classe-média, é a fala discriminatória do pastor, é o comentário das amigas da mãe, é o preconceito enlatado dos colegas de trabalho do pai, é o esconderijo atrás do Rivotril, é o engolir seco quando ouve “mas você é diferente, pelo menos não é afeminado”.

Não esconde mais a sexualidade. Esconde agora a raiva. O ódio por ser odiado. Não pela diferença que o maculou, mas pela desesperança de ser encarado bicho estranho. Engole o fel, disfarça que machuca, vive a vida normal.

Aguenta calado, menino. Que você nasceu invertido, torto, mas a vida te fez de aço.

Aguenta que ninguém sabe direito qual é a sua dor.

Mas falam, dizem muito e argumentam sobre o que não sabem. O que é homofobia, o que é ver semelhantes caírem mortos ao seu lado por serem assim, exatamente igual a você, que a sociedade está mudada, que existem temas mais importantes a serem discutidos na vida pública, que todo mundo pode ter uma opinião sobre a forma de viver sua vida. Mas não sabem. Não sabem que você olha por cima do ombro em uma rua escura ao sair de uma festa, que você sente o frio na barriga ao ler a manchete do jornal com o menino morto a pauladas, que suas entranhas despencam quando a turma do Malafaia fala em rede nacional, que você estarrece por homofobia não ser crime, que você lacrimeja com o estatuto da família, que mente na entrevista quando vai doar sangue, que ninguém que não é torto e invertido tem direito de julgar sua dor, sua apreensão, seu sofrimento. Não sabem que você morre de medo de ficar sozinho, de não ter família, de morrer em um asilo sem filhos. Que morreu de medo aos vinte anos ao se confessar aos pais achando que perderia tudo. Não sabem que você quer amar também. Esse povo não sabe que você, menino, também é feito da mesma carne, do mesmo sangue, do mesmo osso, da mesma lágrima e do mesmo suor, da mesma esperança de vida comum e do mesmo desespero pela felicidade.

Encara, menino.

Encara e seja. Seja mesmo a transsexual na cruz com sangue escorrido, ocupe mesmo seu lugar de fala, proclame-se chato e ativista. Interrompa conversas de bar, dê bronca nos familiares, eduque seus amigos. Seja bondoso. Porque sem você, sem essa sua voz, quem mais nascer torto e de cócoras, vai ser de pedra. E não podemos ser de pedra. De pedra já basta a cabeça daqueles que estão do outro lado.

Seja aço.

É luta, é manifesto, são todos os dias.

Aqueles contra, não passarão.

Ninguém é mais macho do que eu.

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Foto de Hernán Piñera (Hernán Piñera)

Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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