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Angela Merkel não “passou o pano”

Replexões sobre "passar o pano" em cinco rounds de corda.

por Adolfo Caboclo, 7 de julho de 2020
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Vamos lá. Cinco rounds de corda. Zera o cronômetro. Vai!

Um, dois (tropeça).

Um (tropeça).

Cacete. Demora um pouco para esquentar.

Agora sim. Ombro relaxado, quadril soltinho e panturrilha de bailarino. Não erro mais.

Ainda não deu nem um minuto? Vou fazer rounds de quatro minutos – para quando voltar ao boxe ter facilidade nos de três. Estou ficando velho, se essa quarentena me parar, eu não volto mais.

Se não fosse a corda, eu não teria ritmo em nada. Todo mundo tem ritmo na escrita e eu vomito informações. Lá no ateliê vejo o Manoel pintando, calmo, respirando. Me sinto um chimpanzé metralhando a tela de tinta.

O que escrevo para a próxima terça-feira? Já sei! Ops, acelerei demais a corda.

Cadência. Soltinho. Está acabando o round. Acabou.

Um minuto para respirar. Respira devagar e profundo. Estou ficando velho, deveria ter bebido menos.

Segundo round. Já não erro mais, esquentei.

Sobre o que eu ia escrever mesmo? Lembrei, sobre a Angela Merkel!

Ano passado ela tirou dois quadros do Emil Nolde da parede do seu gabinete.

Descobriram que ele simpatizava com o nazismo. Um dos maiores expressionistas. Como pode?

Além do Hitler ser um monstro, ele queimava quadros expressionistas. O Nolde não entendeu que ele era um “degenerado”?

Isso que eu falo e ninguém acredita. Ter votado no Bolsonaro é ter o nome desgraçado para o resto da História. Não dá para “dar boi” nem para o Nolde, que era um gênio. Os netos vão sentir vergonha mesmo.

Cacete, que cagada. Todo mundo que conheço sabia o que estava fazendo (tropeça).

Perdi o ritmo.

A corda não perdoa quem não sabe respirar.

Acho que é isso, vou escrever sobre a Merkel tirando o quadro do Nolde do gabinete.

Segundo round acabou. O segundo é sempre o mais difícil. Agora vai!

Deveria ter bebido menos. Já se foram 50 segundos. Voltou.

Fico pensando em texto sobre o Nolde e ainda nem terminei o meu projeto de pesquisa. Acho que não sei escrever. Não tenho ritmo. Vomito informações. Passei muito tempo da vida no bar.

Pelo menos vou virar um acadêmico com alguma malandragem.

Quem estou enganando? Eu fui roubado nesse carnaval, como se fosse um moleque.

Perdi o diploma de malandro e ainda nem ganhei um na ECA. É foda. Por isso que os ministros do Bolsonaro mentem no lattes. Todo mundo mente e demitem só o negro.

Racistas filhos da puta.

Esquentei mesmo. Até estou passando raiva sem errar na corda. Como votaram nesse cara?

Isso diz tudo sobre a pessoa. Ficha completa. O que assistem, como se informam, com que amigos andam, o que lêem… acabou.

Já foram três rounds! Se eu fosse dez anos mais novo, seria uma fera. Vou dar uma estudada no expressionismo alemão para falar do Emil Nolde com mais segurança.

Voltou.

Soltinho.

Mas já escrevi sobre derrubar ou não estátuas na semana passada. Será que não vai ser repetitivo?

Minha amiga me cobrou nessa semana. Disse que eu falo muito do Picasso sem deixar um aviso que ele foi um escroto.

Mas super acho que eu comento isso.

Eu só não comento o tempo todo.

É tipo falar dos filmes e fotografias da Leni Refenstahl. Eu preciso ficar lembrando que ela era nazista? Todo mundo já não sabe?

Poutz… não.

Não sabe.

Cacete, eu “passo o pano” para o Picasso. A Merkel, toda conservadora, foi lá e tirou o quadro Nolde. E eu “passando pano” para o Picasso. E para o Woody Allen. Puta merda, eu adoro ir ao cinema ver um Woody Allen. Que desgraça.

Acabou o quarto round. Estou voando. Me sinto bem. Boxe é melhor que terapia e as pessoas acham que estou brincando quando falo isso. Tudo o que eu falo é verdade. Sou ariano.

Último round. O vizinho está me olhando. Velho foda escutando Milton Nascimento. Adoraria beber uma cachaça com esse velho foda escutando Milton.

Vou fechar os olhos e fazer uma prece. Aproveitar que estou sentindo o ritmo do meu corpo.

O ritmo do meu coração, da minha respiração. Soltinho. Levitando.

“Pai nosso, que estais no céu…”, poutz. Acho que virei ateu. Vai ser foda explicar isso para a família.

Respira.

Mas sempre entro em estado meditativo. No último round.

Sempre.

Um ateu que medita e acredita em signos.

Faz todo sentido a Frida ser canceriana e o Rivera sagitariano. A Tarsila só poderia ser virginiana, as telas dela parecem uma planilha de Excel. Só falta um minuto.

Acho que vou escrever sobre o Nolde mesmo. Qual será o signo dele? Ele, um gênio, fez merda. Uma merda histórica. Agora, a Merkel não “passa pano” para o Nolde e querem que eu “passe o pano” para a porra de bolsomi… (tropeça)

 

Merkel e a obra de Emil Nolde (Brecher, óleo sobre tela, 1936) Foto de 2019.

Merkel e a obra de Emil Nolde (Brecher, óleo sobre tela, 1936). Foto de 2019.

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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