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Digam ao povo que frito

Kiki de Montparnasse adoraria um show da Anitta.

por Adolfo Caboclo, 1 de setembro de 2020
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Frito, como na gíria. Em metáfora comparativa ao consumo excessivo de drogas sintéticas. Ao esfacelamento do sistema dopaminérgico. Frito, junto com toda a minha geração.

Por aqui, nada mais faz sentido. Um ser humano não pode adaptar-se neste país – os adaptados, receio não serem mais humanos. Podem até possuir uma morfologia humana, legitimada por métricas vetruvianas, albertinianas ou euclidianas: historicamente, não faltaram teóricos para descrever o que é uma forma humanoide. Alguns, inclusive, viram espiritualidade na anatomia humana. Por exemplo, em 1667, Charles Le Blun, em seu texto O apogeu das expressões das paixões, disse que a forma mais potente para o corpo humano expressar suas paixões é através das sobrancelhas. Isso devido ao fato delas estarem próximas à glândula pineal, lugar onde acreditam que a alma recebe imagens, a parte do cérebro que espiritualistas veem como fundamental para a mediunidade.

Não sei se a paixão também é espiritual, mas com certeza é química. Geradora de picos de alegrias e tristezas, subjetiva e destruidora da razão. Infinitas sobrancelhas abatidas desta geração não negam: estamos todos fritos. Parece cocaína, mas é só um país sem empatia, pandêmico, genocida, que põe fogo em suas matas e com lideranças abjetas – e quanto mais abjetas, mais geram identificação com grande parte da sociedade e isso, fatalmente, engloba pessoas próximas. Talvez amadas, agora desamadas.

Em algum momento da história, começamos a ver que o mundo é torto. Para vermos essa realidade tortuosa, sempre existiu a tensão entre o moderno e figuras que hoje equivalem ao “tio do zap”.

Pouco mais de uma centena de anos atrás, próximo da virada para o século XX, artistas pós-impressionistas como Cézanne e Vicent Von Gogh gritavam em suas telas e poucos escutavam. Von Gogh, em carta para seu irmão Theo, em setembro de 1888, disse que com uma folha de grama se pode desenhar todas as plantas e sugeriu vivermos a natureza como se fossemos flores. Para um homem com esse tipo de pensamento – ser que soube ver uma folha de grama e tentou ser flor –, restou a loucura e uma produções espetacular, mas não compreendida em um primeiro momento. Também foi assim, difícil, para as formas e cores do simbolismo de Gaugin, o artista só foi encontrar no Taiti as respostas que jamais viu em Paris. Algum tempo depois, chegou a vez do expressionismo eclodir e ser criticado pelos “tios” da época. Poucos aceitavam ver o mundo com outros olhos.

Nos anos de 1900, o grupo expressionista de Henri Matisse acabou sendo chamado de les fauves, “as feras” em francês. Nome dado pelo crítico Louis Vauxcelles por causa das deformações e cores das obras. Sempre existirá alguém para chamar o outro de fera, primitivo, naïve, pitoresco, selvagem ou não civilizado. Sempre existirá alguém negando que o mundo é torto. Esse “alguém” pode aparecer, em um caso extremo, na figura de Adolf Hitler em seu delírio de Arte Degenerada – caçando e queimando a arte moderna e também no nosso dia a dia, em flertes desse conservadorismo que insiste em não entender o mundo. Estes se apresentam, por exemplo, ao maldizerem de Anitta, a cantora, enquanto defendem algum rock com três acordes.

Me veio em mente que alguns anos após os fauvistas, surgiu no mesmo bairro parisiense a figura de Alice Prin, a Kiki de Montparnasse – apelidada de “rainha de Montparnasse”. Cantora, modelo de tantos artistas da época, sendo inclusive clicada por Man Ray. Aposto que Kiki adoraria ter visto um show da Anitta. Mesmo Anitta sendo uma figura relativamente recatada diante de Kiki. Após um século, parece claro que independente da produção da francesa, é o poder de sua figura que se apresenta como relevante para a história.

Podemos estar isolados em casa, mas os livros e o passado seguem sendo uma viagem. Enquanto viajamos, estamos aqui. A querentena segue sendo uma panela de pressão. Nem é pelo bem de todos, muito menos pela felicidade geral dessa nação que flerta com o fascismo, mas digam a todos que frito.

 

Man Ray e Instagram

Kiki de Montparnasse (por volta de 1920, foto de Man Ray) e Anitta (clipe “Tá com o Papato”, 2020)

Museu Hermitage

A dança (Henri Matisse,1909)

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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