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Derruba ou não derruba?

por Adolfo Caboclo, 23 de junho de 2020
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O Motim (2017) - Manoel Canada

O Motim (2017) – Manoel Canada

 

Algum tempo atrás, fui ao cinema na rua Augusta e, munido de um bom saco de pipocas, prestigiei o filme sueco vencedor da Palma de Ouro, “The Square: A Arte da discórdia” (2017). Em sua primeira cena, a direção de um museu em Estocolmo substitui com um guindaste, em uma praça diante do próprio museu, uma estátua equestre em bronze por uma obra contemporânea, idealizada por uma artista fictícia argentina e composta pela figura de um quadrado no chão, “the square”, que dá nome ao filme.

Nessa cena, o filme começa a ditar sua narrativa que constantemente tenta nos provocar: “afinal, essa forma de arte ainda faz algum sentido?”.

Utilizei essa obra para introduzir uma discussão atual: a derrubada de estátuas ocidentais que não fazem mais sentido atualmente. Aqui, pondero que falo de estátuas ocidentais, porque se formos falar, por exemplo, de estátuas do século VII a.C. que foram derrubas pelo Estado Islâmico em 2015, no Museu Ninevah, na cidade iraquiana de Mossul, talvez perdêssemos o foco dessa discussão.

O debate sobre a legitimidade da queda de algumas imagens ganhou força no dia 7 de junho, quando, em uma manifestação antirracista, participantes derrubaram a estátua do escravocrata Edward Colston, na cidade inglesa de Bristol. Uma ação que foi bonita. Como Eduardo Galeano nos lembra no livro As veias abertas da América Latina, o que rendeu mais dinheiro no Brasil colonial não foi o ouro ou o açúcar, mas a escravidão. E a maioria desses rendimentos não foi para Portugal, mas para a Inglaterra, ao ponto de, no século XVI, Bristol ter se tornado a segunda cidade do país e Liverpool o maior porto do mundo. Naquela época, um inglês poderia viver com seis libras por ano, enquanto mercadores de escravos ganhavam cerca de 1100 libras por ano. Ou seja, derrubaram uma estátua maldita de um escravocrata e, no momento em que ela é jogada ao rio – próximo ao mesmo mar que milhões de escravizados foram jogados –, acredito que melhoramos um pouco como sociedade.

A questão é: também devemos derrubar as nossas estátuas? Por motivos de reparação histórica ou de ressignificação, devemos passar o trator em tudo? Os defensores de monumentos fundados na violência  rapidamente comparam tais estátuas com o Coliseu romano ou quaisquer outros ícones de atrocidades com valor histórico. Como se já não tivessem passado o trator, por exemplo, no que foi Palmares, ou como se importassem com memória histórica ao ver mudanças no nome do Largo da Forca para Praça da Liberdade. Já a turma dos “sensatos” tenta exalar sobriedade ao falar, em tom moralista, que “mais importante do que as estátuas que vocês querem destruir são as estátuas que queremos levantar”. Eu, particularmente, acho que tem muita coisa que tem que ser destruída, sim, assim como muita coisa precisa ser mantida, então sigo me apegando na poética visual que tudo isso pode gerar.

Mais poético do que a derrubada da estátua de Edward Colston foi o fato de a obra ser derrubada, justamente, em Bristol. Arrastada e jogada nas águas, em uma das grandes cidades escravagistas da história. Afinal, precisamos de uma narrativa mais digna para a nossa existência nesse planeta, não?

Na última segunda, dia 22 de junho, no programa Roda Viva, o doutor em filosofia e teoria do direito Silvio Almeida ponderou que, se a cidade é um espaço político, logo a escolha de quem ela reverencia em seu tecido urbano, por meio de monumentos, também é. Construir monumentos são escolhas políticas, assim como destruí-los. Particularmente, me arrisco a complementar essa resposta dizendo que são escolhas políticas e mágicas. Sir Gombrich, em seu livro História da Arte diz que mesmo o mais cético dos homens não consegue ser indiferente diante de alguém com uma agulha furando os olhos da fotografia de um ente querido. A imagem tem esse tipo de maldição, rouba um pouco da alma do registrado, mesmo que ele não acredite em alma. O ser humano sempre ficará tentado a, por exemplo, rasgar as fotografias que registraram um antigo romance.

Nesse cenário em que monumentos são política e magia, lembro de uma obra do meu grande amigo e mestre Manoel Canada, uma pintura chamada “O motim” (2018, óleo sobre tela, 200 x 150cm). Nela estão representados, sob o vão do Masp, vestígios de uma suposta revolução em que o “Monumento Anhanguera” (Luigi Brizzolara, 1924, mármore) – aquela estátua de um bandeirante de cara brava, que fica na frente do Parque Trianon –,  tem a sua cabeça arrancada e jogada ao lado da representação da obra de Delacroix, “A Liberdade guiando o povo” (1830). É uma imagem que, claramente, evoca um espírito de revolução e guilhotina. Na obra, Manoel Canada “matou” a imagem de Anhanguera.

Para os índios goiá, “Anhanguera” significa “espírito mal” – o bicho era realmente ruim –, e é ótimo que esse espírito mal seja atacado por meio da magia da arte. “Mundo físico, psíquico e espiritual, a tríade da qual compõe a própria arte”, manifestou Hélio Oiticica em 1962.

Dito isso, a estátua do bandeirante deveria ser derrubada? Talvez. No entanto, acredito que existem outras formas de correção histórica. Mário Pedrosa dizia que os museus jamais devem esquecer suas funções educativas. Em pleno ano de 2020, em que o Museu de História Natural de Nova York anunciou que irá retirar a “estátua equestre de Theodore Roosevelt” (James Earl Fraser, bronze, 1939) por simbologia racista, o Masp faz a sua primeira exposição com uma curadora indígena, Sandra Benites, porém a figura em mármore de Anhanguera, com atmosfera tão heroica, continua sendo ostentada na Avenida Paulista, bem em frente ao museu, sem qualquer problematização.

Edgar Degas, que não teve em vida suas esculturas em cera fundidas, dizia que fundir estátuas é uma responsabilidade que não encara, pois ficam para a eternidade. Possivelmente, Luigi Brizzolara não imaginava o seu “eterno” equívoco em mármore. Será que nossa sociedade contemporânea manterá esse equívoco? Teremos essas respostas após a quarentena? Meu palpite é pessimista.

Vale lembrar que a estátua de Anhanguera na Avenida Paulista é uma obra bem conservada, protegida por policiais militares em um posto ao lado. Enquanto isso, alguns metros adiante na mesma avenida, repousa a estátua “Índio pescador” (Francisco Leopoldo e Silva, bronze, 1928) – essa sim completamente abandonada, com sua lança roubada e sem iluminação. Na Avenida Paulista de 2020 a imagem de um bandeirante segue sendo mais bem cuidada que a de um indígena.

Para a nossa desgraça, o arquétipo do bandeirante “está na moda”. Além de genocida e escravocrata, ele também representa, em um passado não muito distante, as funções exercidas tanto pelas Forças Armadas como pela milícia. Atacar a imagem do bandeirante é jogar uma pedra no espelho da pauliceia e entender um pouco o motivo de ninguém ter ficado bravo quando foram derrubadas as estátuas de Saddam Hussein no Iraque ou de Josef Stalin na União Soviética. A comoção ocorre apenas quando derrubam a imagem de um racista genocida em uma sociedade racista e genocida, que não se acha nem racista e nem genocida. A derrubada desse signo seria uma forma dessa mesma sociedade assumir sua escancarada condição racista que tanto refuta. Como Silvio Almeida bem comentou na entrevista do Roda Viva, “tem gente chorando por estátua e não é capaz de chorar quando morre um negro”.

Um estudo do movimento Rios e Ruas diz que a cidade de São Paulo tem mais de 300 rios e nascentes que foram encobertos por ruas. Entendo que encobrir um rio é também uma manifestação clara de negação de imaginário – no caso, indígena. Por isso, acredito que, se é poético, político e mágico derrubar estátuas, também seria poético, político e mágico dinamitar uma rua de São Paulo para que um rio seja reaberto. Porém, temos que voltar para Mário Pedrosa e lembrar que nenhuma dessas ações valeriam se as pessoas não têm repertório para decodificar o que tais atos significam.

Durante o período das últimas eleições municipais, manifestantes jogaram tinta no “Monumento às bandeiras” (Victor Brecheret, 1954). Pouco tempo depois, o então candidato João Dória discursou diante do monumento condenando a ação. Suas palavras sensibilizaram uma xucra e enorme parcela da elite e classe média paulistana, que naquele momento era incapaz de decodificar qualquer signo além do “vandalismo” no protesto.

Sem dúvida, a destruição do “Monumento às bandeiras” seria legítima – Brecheret que me perdoe, um dos meus artistas prediletos –, mas, também, com certeza seria deturpada ao mainstream. Por outro lado, lembro da enorme e produtiva discussão que a estátua “Fearless girl” (Kristen Visbal, bronze, 2017) gerou ao mundo quando foi colocada diante do touro de Wall Street, o “Charging bull” (Arturo di Modica, bronze, 1989). Uma menina sem medo diante da besta do capitalismo foi mais instigante do que uma suposta destruição do touro.

Não vejo nada de errado em ressignificar uma estátua. Ressignificar pode ser derrubá-la, cortar sua cabeça, levantar uma outra estátua ao seu lado, mudá-la de local, jogar tinta, colocar ao lado uma placa explicando o contexto histórico, entre inúmeras outras formas.

Mudanças estão aí para serem feitas. O rapper Criolo, por exemplo, mudou a letra de um de suas músicas antigas por ter conteúdo transfóbico. Mas isso só aconteceu porque é uma música. No caso das esculturas, como disse Degas, são obras para a eternidade. Em 2003, os irmãos britânicos Jack & Dinos Chapman desenharam sobre um Goya original para provocar uma discussão; em “The square” (2017), a brincadeira estava exatamente na dúvida se era legítimo derrubar uma estátua equestre em nome de uma obra contemporânea ou não. No caso de Bristol, não existe essa dúvida sobre legitimidade. Definitivamente, é mais que razoável e urgente interferir em uma obra obsoleta trazendo luz ao debate de um dos maiores problemas que a humanidade já enfrentou: a escravidão e o racismo estrutural que vivemos.

Discutir a simbologia artística na contemporaneidade da maneira mais efetiva possível é uma urgência e isso não é feito, necessariamente, com a derrubada de estátuas. Mas pode ser.

 Em Bristol foi.

"Edward Colston" sendo jogado no rio (2020)

“Edward Colston” sendo jogado no rio (2020)

"Monumento Anhanguera" em frente ao Masp

“Monumento Anhanguera” em frente ao Masp

"Indio pescador" (1928) - Franscisco Leopoldo Silva

“Indio pescador” (1928) – Franscisco Leopoldo Silva

"Monumento às Bandeiras" foi alvo de tintas em 2016

“Monumento às Bandeiras” foi alvo de tintas em 2016

"Fearless Girl" (2017) - Kristen Visbal

“Fearless Girl” (2017) – Kristen Visbal

 

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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