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Instituto Hilda Hilst

por Fernanda Miranda, 24 de maio de 2013

“(…) ando ficando com medo e não sei dizer bem por quê. As palavras metem medo, é isso sim, essas palavras de dentro metem medo, seria melhor ficar mudo. Escuta, Guzuel, às vezes me vem vontade de nunca mais falar. Quê? De ficar mudo pra sempre. Quê? Isso é suspeito, Jozu, eles te prendem. Quem? Eles. Por quê? Porque porra Jozu, todo mundo sabe que tu fala e se de repente fica mudo não cola, entende? Mas não é quando a gente fala que eles prendem? Também prendem, se tu fala besteira. E o que é besteira, Guzuel?”

O texto acima faz parte do conto “O grande-pequeno Jozu”, do livro “Rútilos” da poeta, cronista e dramaturga Hilda Hilst, que virou a peça “Jozú, o encantador de ratos” na adaptação do escritor José Luiz Mora Fuentes e da atriz Carla Tausz. Peça esta que tive a alegria de ver na própria casa onde Hilda morou na maior parte de sua vida – a batizada Casa do Sol, próximo a Campinas.

Para chegar até lá é preciso pegar um pequeno trecho de uma estrada que liga Campinas a Jaguariúna, trecho de não mais de dez quilômetros. Eu teria chegado rapidinho se não fosse o trânsito por causa de uma festa country que estava rolando em Jaguariúna – o taxista me informou. A Casa, após a morte da escritora em 2004, virou o Instituto Hilda Hilst, que além de preservar o lugar, é um espaço pensante e pulsante, como vocês verão logo mais. Fui recebida por Jurandy Valença, diretor de projetos do Instituto, e por uma dezena de cachorrinhos carinhosos que também foram me recepcionar no portão. Enquanto esperava o Daniel Fuentes, presidente do Instituto, para bater um papo, fiquei brincando com a Bolívia, ou Bobó, uma cachorra cinza que sorri. “Hoje são 11 cachorros, mas na época em que Hilda era viva já chegou a ter mais de 100”, explicou Olga Bilenky, que administra a Casa. Nas paredes da casa, vi alguns quadros espalhados e retratos da Hilda e de seus amigos que frequentaram e até moraram lá, como os escritores Caio Fernando Abreu e José Luis Mora Fuentes. Sobre as mesas de madeira, um Buda, um castiçal, um bule, xícaras, algumas pedras, retratos e inúmeras outras coisas. O perfume de um incenso que soltava seu aroma de dentro da casa se misturava com o cheiro de mato que vinha de lá fora.

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A casa foi construída quando aquelas terras ainda faziam parte da fazenda da mãe de Hilda, a Fazenda São José. A escritora escolheu aquele exato lugar, que até então era um pasto, porque gostou de uma figueira que ali estava. E hoje, a bem da verdade, a região é uma área totalmente urbanizada, onde até passa ônibus, mas a casa em que Hilda morou ainda assim fica um pouco afastada do que é de concreto e asfalto, além de ser cercada por árvores e pela figueira, o que me deu a impressão de estar imersa na natureza. A impressão ficou ainda mais forte quando fomos direcionados para o pátio, onde ia ser encenada a peça. Assim que a porta abriu ao público, reparei que a iluminação no pátio estava propositalmente baixa, mas o céu, no dia coberto de estrelas e de uma linda lua, dava brilho e um toque final extraordinário àquele cenário.

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A conversa com o Daniel rolou em dois momentos – antes e depois da peça. O papo prévio, que foi numa mesa de jantar que fica à esquerda da sala, foi interrompido para o início da apresentação – um monólogo marcante e inesquecível da atriz Carla Tausz
dando vida à obra de Hilda. “Jozú, o encantador de ratos” é a história de Jozu, que ganha a vida treinando seu rato de estimação, que é também seu melhor amigo. Jozu, junto ao seu rato, sempre visita um poço seco, um lugar especial para ele. “Dentro do poço seco eu sou mais do que Jozu encantador de ratos, mais alguma coisa que eu não sei o que é. Sou Mais.” O poço da peça realmente existe, e está no centro do pátio, e é o mesmo poço que inspirou Hilda a escrever o conto. Ao término do espetáculo, nos deslocamos para um sofá para terminar a entrevista, onde estava não só o Daniel, mas também Victor Amatucci, que fez a iluminação da peça, e até a Carla Tausz, que deu um depoimento emocionante, e não pude deixar de notar que seus olhos brilhantes estavam úmidos. Abaixo tentei reunir os melhores momentos da múltipla conversa que, desde o início, bem como o clima que presenciei durante toda a visita, foi bem descontraída e gostosa de vivenciar.

Daniel Fuentes Daniel Fuentes – presidente do Instituto Hilda Hilst

Não Só o Gato: Como surgiu a idéia do Instituto?

Daniel Fuentes: Bom, vou contar desde o começo. A Hilda vivia em São Paulo, tinha uma vida num estilo “alta sociedade”, e aí por volta de 1964, 65, ela teve a clara percepção que das duas uma: ou ela seguia a vida de badalação, ou ela produzia a obra dela. E aí ela decidiu vir pra cá, com 36 anos, para produzir. E aqui ela fez mais de 90% de sua obra. Ela até tem dois livros anteriores a vinda a Campinas, mas ela própria considera que é uma “pré-obra”. Em 68 meu pai, José Luis Mora Fuentes, que tinha 18 anos, veio pra cá. Ele e a Hilda tiveram uma imensa amizade e talvez, talvez não, com certeza foi a amizade mais profunda da vida dos dois. Uma das coisas mais bonitas que eu já vi na minha vida. Era uma amizade de troca intelectual, afetiva, de tudo. Aí meu pai veio morar também aqui. Quando eu nasci, em 1983, meus pais [ele é filho de Mora Fuentes e da Olga Bilenky] foram morar em São Paulo. Mas a Hilda é família “estendida”, não morei aqui, mas vinha pra cá sempre, passei minha infância aqui. Quando ela morreu, no dia 4 de fevereiro de 2004, meu pai decidiu criar o Instituto para conseguir arcar com as dívidas de IPTU da casa, que era mais ou menos de 3 milhões de reais, então o Instituto foi meio que uma junção de forças para conseguir pagar esse passivo. Só que meu pai morreu em 2009, aí eu assumi a presidência. Em 2011 foi o ano da “cereja no bolo”, quando conseguimos resolver o problema da dívida e a Casa do Sol foi tombada pelo patrimônio histórico.

NSG: E depois do tombamento, o que aconteceu?

Daniel: De 2012 pra cá começamos a desenvolver projetos culturais mais específicos. O primeiro que a gente lançou é o programa de Residência Artística. [Um programa que abriga residentes na Casa do Sol durante um determinado período que queiram trabalhar em algum tipo de projeto, porém este não precisa ser necessariamente ligado à obra de Hilda Hilst]. O projeto começou há um ano e a gente já recebeu mais de 40 residentes. Teve um, por exemplo, que veio dos Estados Unidos, ele era tradutor da Hilda, e ficou um mês aqui. Ele quis ver a casa, porque a Hilda referencia muito a casa na obra dela, né, então ele quis sentir aqui, estudar diretamente a biblioteca dela, e ver os livros que ela estava lendo na época. Mas também tem projetos diversos, já veio uma moça que trabalha com moda para produzir uma coleção da loja dela, veio porque precisava sair do ritmo dela para produzir. E tem gente que fica dois, três dias, mas tem gente que ficou já mais de três meses. A gente também vai começar um projeto que é uma parceria com o Ateliê Aberto, chamado “Poemas aos homens do nosso tempo”. Cinco artistas plásticos vão ficar aqui em residência por um mês, e disso vai sair uma exposição baseado numa série de poemas da Hilda que está no livro “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”. Além disso, a gente também administra os direitos autorais, e tem muito teatro sendo feito com a Hilda. Eu chego a autorizar dez peças por mês, a demanda é muito grande, sempre tem peça da Hilda acontecendo em algum lugar do Brasil, às vezes até fora. Ela está sendo muito traduzida e muito bem criticada no exterior, nos Estados Unidos principalmente, mas também na Espanha, na Argentina, da Argentina sai pra América Latina, enfim, muita coisa rolando nesse sentido. E também tem o teatro no Instituto. O teatro a gente criou com uma campanha de crowdfunding [método coletivo de financiamento de um projeto]. A gente pretendia atingir o valor inicial em três meses, e a gente atingiu em dois. Veio doação do país inteiro, sendo que 40% das doações vieram de fora do Brasil. E assim pudemos estruturar o teatro. A primeira temporada – a gente vai fazer três – é essa do “Jozú, o Encantador de Ratos” [Essa temporada encerrou no dia 18 de maio. As próximas serão divulgadas na página do Facebook do Instituto]. E também tem a loja virtual do Instituto, que deu super certo, onde todos os livros da Hilda estão disponíveis.

NSG: A Hilda tinha um desejo de que a casa dela virasse isso que virou?

Daniel: Sim, ela já até citou isso em entrevista. Ela dizia claramente que ela queria que aqui fosse um “centro de estudos da imortalidade da alma”.

NSG: Como era a sua relação com a Hilda? E as lembranças dessa casa?

Daniel: Eu lembro da Hilda no dia-a-dia aqui, né. Lembro das crônicas que ela escrevia para o Correio Popular, e ela lia essas crônicas na mesa do pátio antes de entrega-las. Aí vinha um carro do jornal até aqui para busca-las, não tinha internet na época, né. Lembro muito de quando ela ia para São Paulo e ficava na nossa casa. Lembro do lançamento do “Amavisse”, eu tinha uns sete, oito anos. E lembro essas coisas… mas eu já tinha vinte anos quando ela morreu.

Carla Tausz: Eu vim pra cá um ano depois que ela morreu, né.

Daniel: Eu não lembro de você vindo aqui…

Carla: Eu vim aqui, e acho que você não tava. Eu era muito amiga do Zé [o escritor José Luis Mora Fuentes], muito, tipo, muito, muito. Eu ia fazer “A Obscena Senhora D”, e vim aqui atrás dos direitos autorais, e quando cheguei, eu lembro direitinho de ver o Zé no portão. Ele foi a maior amizade da minha vida. Ficamos amigos em dois dias. Uma coisa louca, assim. Um dia ele sonhou que tinha entrado por uma televisão e saído na televisão da minha casa, quando ele chegou lá eu não era a Carla, eu era o Jozu. E aí ele pediu para eu ler Jozu. A Obscena Senhora D acabou ficando de lado, porque eu tive que fazer Jozu. Ele até ficava puto comigo porque quando eu falava com os jornalistas eu queria contar esse história, porque é uma história incrível pra mim. Fellini fez todos os filmes dele baseados no sonho, eu respeito muito o sonho. Mas o Zé falava: “Carla, eu sei, mas você não pode falar para um jornalista que eu sonhei que você era Jozu”. Não deu tempo de ele ver, mas hoje eu estou aqui, como Jozu, inaugurando o teatro da casa da Hilda.

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 Fotos por Adolfo Martins

Fernanda Miranda

Recém-formada em jornalismo e editora do Não Só o Gato. Ama história em quadrinhos, os textos da jornalista Eliane Brum, as trilhas sonoras dos filmes do Woody Allen e azeitonas.

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