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Quinquilharias, curadoria e Cavaleiros do Zodíaco

Cloth Myth EX sem cosmos, mas com aura.

por Adolfo Caboclo, 7 de setembro de 2020
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Hoje vou remoer quinquilharias. Não aquelas sentimentais, que arranham bem aqui dentro da caixa torácica, falo daquelas que sobram em nossa rotina – que geralmente são oriundas do plástico, reproduzidas massivamente e assim, não possuem “aura”.

Uso a ideia de “não ter aura”, pois esta vem do antológico texto de Walter Benjamin, A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica (1936), que fala que uma obra possui a característica de ser única – um quadro; uma escultura; um desenho carregam consigo uma “vida” própria, intransferível. Então, com o surgimento da Revolução Industrial (1760 – 1840) e de novas tecnologias, o ser-humano passou a ter o poder de reproduzir as coisas. Uma fotografia, por exemplo, passou a poder ser reproduzida diversas vezes e com isso, segundo Benjamin, cada vez que essa imagem ganha uma cópia, ela também perde “camadas de aura”.

Se existe uma ideia de que a reprodutibilidade faz uma fotografia perder “camadas de aura”, o que dizer do brinde do Kinder Ovo? Do presente do Mc Lanche Feliz? Do ímã souvenir da viagem? Esses são exemplos das infinitas e “desauradas” quinquilharias que são reproduzidas e nos circundam.

Em uma visão mais conservadora, a quinquilharia também é relacionada com o mal gosto e a má gestão de recursos. Em teoria, uma cópia da Mona Lisa (Leonardo da Vinci, 1503) não possui valor social, cultural ou financeiro, então poderia ser tratada como um investimento em algo insustentável dentro de diversas perspectivas.

Partindo dessa lógica, também é possível, por exemplo, entender algumas das polêmicas relacionadas ao “apartamentão neoclássico da elite paulistana”: além de seus problemas óbvios, como a falta de proporção humana e diálogo com o tecido urbano, suas características neoclássicas não foram geradas por artesãos, mas pela reprodutibilidade de formas de gesso e cimento – condições que, como comentamos, sugere uma “falta de aura” e um desperdício de recursos. Algo supostamente (ou não) vulgar.

Posso maldizer de quinquilharias, porém, como todo homem pós-moderno, sofro por falar coisas que geralmente são contraditórias. Digo isso por ser um colecionador de figuras de ação da franquia Cavaleiros do Zodíaco. Minha coleção possui todas as características que “espinafrei” anteriormente: são objetos de plástico produzidos em larga escala, que me geraram grandes despesas, possuidores de uma narrativa ditada de forma totalmente comercial e sem qualquer reflexão artística ou filosófica. O que me faz pensar que essa coleção não passa de um vulgar acúmulo de quinquilharias?

Pois bem, começo me defendendo pelo ponto de vista expositivo. Se, por exemplo, você pegar uma moeda e colocar em seu bolso, o valor dessa moeda é um. Se você pegar essa mesma moeda e a coloca em uma moldura, pendurar na parede, ela é ressignificada. Minha coleção é ostentada em uma cristaleira, com uma lógica expositiva e submetida a uma curadoria para aquisição. A maneira que objetos são expostos é uma discussão tão complexa que vai muito além da lógica museológica ocidental, é um debate além do objeto em si.

Porém, mesmo diante de uma lógica expográfica, esses ainda são objetos que, segundo Benjamin, não possuem “camadas de aura”. Se por um lado isso é um fato, por outro, Cavaleiros é uma franquia que, particularmente, influenciou minha infância. No livro A Psicanálise na Terra do Nunca (Diana Corso e Mário Corso), entendemos que nossas histórias e desenhos animados favoritos da infância sugestionam, através da inspiração e identificação, boa parte do que nos formamos. O que traz valor para esses objetos, é muito mais a relação que o colecionador tem com eles do que a coleção em si. Quando uma pessoa fala que “eu coleciono porque gosto e ponto”, ela está correta, porém falando algo de forma incompleta: existe muita coisa além desse “e ponto”, existem afetos. Uma coleção se parece muito com um autorretrato.

É impossível visitar, por exemplo, o ateliê de Diego Rivera na Cidade do México e não se impressionar com sua coleção de caveiras de papel marché. Me faz pensar que o colecionismo possui, sim, algo de compulsivo – uma das características que surgem em alguns indivíduos após sofrerem alguma lesão cerebral no lobo frontal é justamente o colecionismo desenfreado –, mas também, essa é uma característica que demonstra uma humanidade extrema, um exercício de significação. Uma eterna tentativa de vermos sentido no mundo por meio de afetividades. Nossas quinquilharias que estão em prateleiras parecem refletir as que guardamos dentro da caixa torácica.

Adolfo Caboclo | Não Só o Gato
Adolfo Caboclo | Não Só o Gato
Adolfo Caboclo | Não Só o Gato
Adolfo Caboclo | Não Só o Gato
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Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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