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A Sinfônica de Heliópolis como um novo tom para o futuro da comunidade

por Estela Marcondes, 4 de novembro de 2013
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h1Era uma vez a maior comunidade de São Paulo, a segunda maior do Brasil, após a Rocinha (no Rio de Janeiro), e uma das maiores da América Latina: a favela de Heliópolis.

Localizada na região sudeste da cidade de São Paulo, começou a ser ocupada no início da década de 70, quando a Prefeitura, sob o pretexto da abertura de novas vias, transferiu mais de 150 famílias que residiam nas favelas “Vergueiro” e “Vila Prudente” para um terreno que pertencia ao Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social. Desde então, cada vez mais famílias, principalmente de trabalhadores nordestinos, passaram a construir barracos na região e Heliópolis passou por uma verdadeira explosão demográfica.

Atualmente, mais de 70 mil habitantes moram no local – que já se tornou oficialmente um bairro – e existem ações de regularização e urbanização para que diminuam as áreas de risco e para que as pessoas desta comunidade tenham melhores condições de vida (nada mais do que lhes é de DIREITO, cá entre nós).

Acho curioso e intrigante pensar como transformações lindíssimas podem acontecer, paradoxalmente, a partir de tragédias. Parece que às vezes é preciso que ocorra algum fato estrondosamente difícil para nós, seres humanos, nos sensibilizarmos com nossa própria espécie e conseguirmos criar laços e unir forças, percebendo a potência que existe (mesmo que, vez ou outra, adormecida) dentro de cada um de nós. Então, a união destas potências singulares cria um COMUM e aí sim surgem atos COMUNITÁRIOS de fato.

Foi mais ou menos isso que aconteceu em 1996 em Heliópolis, quando uma desgraça acabou virando música! Neste ano, um grande incêndio ocorreu por lá. Como muitas moradias eram feitas com madeira, papelão e materiais facilmente inflamáveis, o incêndio causou uma grande destruição e o fato ganhou visibilidade na mídia.

Enquanto o maestro Sílvio Baccarelli assistia à TV, viu a notícia e ficou bastante comovido com a situação. Felizmente, Sílvio sabia que somente sua comoção não ajudaria em absolutamente nada e não resultaria em transformações concretas no futuro daquelas pessoas. Ele sabia que poderia fazer mais.

Para ajudar as famílias, o maestro foi até uma escola pública da região e sugeriu iniciar o ensino de instrumentos de orquestra para, inicialmente, 36 crianças e adolescentes. Contudo, com a falta de um local com a estrutura necessária para estas oficinas dentro da própria comunidade, o espaço inicial escolhido foi o Auditório Baccarelli, localizado na Vila Mariana, que era propriedade particular do músico. Aliás, foi ele mesmo quem bancou toda a estrutura fornecida aos garotos durante dois anos. Mas não é difícil deduzir que a distância entre o local e Heliópolis causava importantes dificuldades de acesso.

A partir de 1998, outras forças começaram a se unir com a de Sílvio Baccarelli e o projeto foi inscrito na Lei Nacional de Incentivo à Cultura (a famosa “Lei Rouanet”). Desde então, várias parcerias se iniciaram, o projeto recebeu novos patrocínios privados e pôde ampliar suas ações. Em 2005, finalmente o Instituto começou a realizar suas atividades na própria comunidade, ocupando (proveitosamente) uma antiga fábrica de sucos. Em 2009, a “Pró-Vida” doou ao grupo um prédio que foi sua primeira sede própria. Dois anos depois, graças ao apoio da Lei Rouanet, o patrocínio da Eletrobrás e muito, mas muito suor de Baccarelli, da molecada e de ações que fazem jus ao adjetivo “comunitárias”, o segundo prédio foi finalizado, planejado para receber cerca de dois mil alunos.

Atualmente, regida e dirigida pelo renomado maestro (surpreendentemente) brasileiro (mesmo com nome que me fazia jurar que era nativo “das gringas”) Isaac Karabtchevsky, a orquestra de Heliópolis é conhecida internacionalmente, realizando concertos com grandes nomes da música popular, como Toquinho, Ivan Lins, João Bosco e muitos outro, e da música erudita (Antonio Meneses, Arnaldo Cohen, Julian Rachlin…). No currículo do grupo também estão participações em grandes eventos nacionais e internacionais, como o concerto para o Papa Bento XVI, na Catedral da Sé, e até mesmo o Rock in Rio.

Na semana passada fiquei sabendo que esta orquestra com uma história incrível iria se apresentar em um lugar que sempre imaginei ser também incrível, mas ainda não conhecia pessoalmente: a sala São Paulo. Situada bem pertinho da Estação da Luz, já havia passado diversas vezes por lá, mas nunca havia entrado naquele imponente edifício cujo entorno é habitado por muitas pombas e, por mais triste que seja dizer isto, algumas pessoas em situação de rua também.

Projetado em 1925, em um período em que a cidade de São Paulo estava em ritmo acelerado de crescimento graças ao café, o prédio – que fazia parte da Estrada de Ferro Sorocabana –  com arquitetura detalhista do estilo Luís XVI, ficou pronto em 1938. Acontece que nesta época São Paulo já estava urbanizada a ponto de ter automóveis, o que minimizou o uso de bondes e trens. Assim, as principais áreas do edifício passaram a ser alugadas para a realização de grandes eventos institucionais e festas pomposas, até que, em 1997, a Secretaria da Cultura do Estado assumiu a gestão do local, que foi transformado no Complexo Cultural Júlio Prestes. Tombada como patrimônio histórico, a Sala São Paulo foi inaugurada em 9 de julho de 1999, tornando-se sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a renomada “OSESP”.

A platéia “chegando”: pessoas de todas as idades

A platéia chegando: pessoas de todas as idades

Unindo o útil ao agradável, fui conferir a apresentação da Sinfônica de Heliópolis no imponente edifício paulistano. Diversos aspectos chamaram a atenção. Ponto positivo para uma beleza arquitetônica com “conteúdo”: a acessibilidade física do espaço é bem bacana, com rampas de acesso, elevadores, cadeiras de rodas disponíveis, sinalizadores no chão para as pessoas com deficiência visual e placas de direção em todas as partes.

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Outro aspecto que me surpreendeu bastante foi o número de crianças na platéia. Algumas delas eram parentes dos músicos, fato que se explicitava pelas camisetas do Instituto Baccarelli de seus familiares, formando quase que um “fã-clube consangüíneo comunitário”. Mas muitas estavam acompanhadas de seus familiares na “platéia-comum” mesmo. O mais divertido foi observá-las durante a apresentação: Um show à parte!

Uma menininha, que aparentava ter uns 7 anos, incessantemente tocava um “piano imaginário” ou imitava os movimentos do maestro, com as mãozinhas agilmente balançando no espaço. Olhando para ela, me lembrei imediatamente do marcante episódio do “Pernalonga maestro”. De fato, a Sinfonia lembrava a trilha sonora dos desenhos animados. Diversas vezes eu lançava um olhar de rabo de olho para ela, imaginando que teria se cansado e adormecido no ombro do pai, mas, quando não estava “tocando”, estava dançando na cadeira ou apontando para os músicos, aparentemente deslumbrada com os “violões” pequenininhos e os gigantes (também conhecidos como violino e violoncelo, respectivamente).

Um garotinho ainda mais novo, no camarote, projetava o corpinho para frente, observando atentamente o que se passava no palco e batendo palmas no ritmo da orquestra. Ele me pareceu ter um talento para a música, com um ritmo surpreendente para a idade, e estar completamente familiarizado com este tipo de apresentação.

Outros pequenos lançavam olhares arregalados, cochilando de tempos em tempos, mas acordando (assustados, surpresos ou curiosos) quando mudava o ritmo da melodia ou um instrumento soava mais intensamente.

De toda forma, mais uma vez me encantei em observar as feições do público durante a apresentação. Algumas senhoras emocionadas, alguns senhores balançando a cabeça no ritmo da música, muitos abrindo sorrisos ao som doce de um solo da harpa ou da flauta e, mesmo aqueles cujas feições não explicitavam se estavam ou não apreciando o que viam, causavam diversão apenas no fato de imaginar no que estavam pensando.

Ao final da apresentação, com o público aplaudindo em pé os jovens músicos de Heliópolis, me dei conta de que não poderia haver um nome mais propício para este projeto. Garotos “Tocando em Frente Juntos”, construindo uma trilha sonora muito mais bonita para o futuro da comunidade de Heliópolis e escrevendo um importante capítulo na história da música brasileira. Mas eles também alertam para o fato de que apenas o talento, na maioria das vezes, não basta: motivAÇÃO dificilmente vira AÇÃO sem a união de forças comunitárias e parcerias como a do Instituto Baccarelli.

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Fotos por Estela Marcondes e Gustavo Furuta

Estela Marcondes

Estela Marcondes é Terapeuta Ocupacional, acompanhante terapêutica e encantada pelas "linguagens" do mundo, além da verbal. Algumas vezes pensa que a palavra foi inventada por alguém que estava com preguiça de usar os outros sentidos para dizer como se sentia. Adora LIBRAS, dança, trabalhos manuais, música, observar demonstrações explícitas de carinho e elefantes!

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