Assuntos

A voz dos guerreiros

por Estela Marcondes, 18 de fevereiro de 2014

Promessa é dívida. Semana passada, justifiquei minha ausência no NSG durante o mês de janeiro contando justamente sobre as experiências que me fizeram “sumir”: o programa Guerreiros Sem Armas (ainda não leu? Clique aqui, ó!).

Mas de tudo o que ficou deste intenso e incrível mês, as cerejas do bolo são os detalhes. Você já imaginou jovens de 18 países reunidos por mais de um mês, dia e noite falando de sonhos, pensando em como produzir transformações, trocando saberes e convivendo durante uma formação em empreendedorismo social?

foto 1

Senti como se tivesse dado a volta ao mundo em 32 dias. Compartilhar costumes e culturas foi surpreendente. A metodologia do programa, que englobava inúmeras dinâmicas de sensibilização do olhar, do afeto e do cuidado consigo e com o outro, fazia com que trombar no corredor com uma dupla em silêncio, olhando-se profundamente nos olhos e segurando as mãos ou, ainda, com um pequeno grupo de pessoas de olhos fechados com uma delas entoando um cântico com sons tão incompreensíveis quanto inebriantes fosse a coisa mais natural do mundo.

foto 4 foto 5

Não posso deixar de compartilhar algumas dessas histórias incríveis por aqui. Uma delas é a do Mana, índio da tribo Manchineri, no Acre, que esteve por lá. O nome “brasileiro” dele, como ele mesmo diz, é Lázaro. Triste pensar que ele precise de um. “Mana” me parece combinar muito mais com os traços marcantes do nosso companheiro que – longe da idealização que muitas vezes recai sobre o povo indígena brasileiro e mais longe ainda da sua subvalorização – autenticamente transbordava inocência de criança e sabedoria de mestre em cada ação ou comentário espontâneo. O Mana foi um guerreiro diferente, pois foi convidado pelo Instituto Elos para participar do programa. Ele já se destacava por sonhar em patentear, catalogar e transformar em livro a cultura das ervas medicinais do seu povo, que tem sido dizimada por turistas e extrativistas brasileiros e estrangeiros.

Sua língua é o arawak, mas ele é um dos únicos de sua aldeia que falam um pouco de português. Mesmo com um cuidado intenso do pessoal do Instituto Elos, o Mana levou 8 dias para chegar a Santos. Ele pegou canoa, andou quatro dias a pé (com paradas para dormir em sua rede, item principal da bagagem que trouxe), pegou jipe e chegou ao aeroporto para ir a São Paulo e depois a Santos. O problema é que aeroporto não é a “casa” de UM só avião e até entender isso, ele perdeu o voo.

foto2

Tudo era muito novo para o Mana. Mais novo ainda para nós, que o escutávamos. Suas perguntas em relação à língua portuguesa ou aos nossos costumes me fizeram pensar como é difícil que o olhar veja para além do “óbvio”. Mesmo dedicando muito tempo a isso, alguns costumes são tão arraigados que só me dou conta quando algum comentário como este ressoa em meus pensamentos: “Acho engraçado… O dia inteirinho vocês reclamam do barulho na cidade. Aí, à noite, quando tá mais quieto, vocês ligam o ventilador do quarto e dormem com o barulho na orelha de novo”.

foto3

Pedi sua autorização para contar no NSG uma de suas histórias. Sem dúvidas, a mais linda sobre fé que já escutei. Ele nunca havia viajado de avião. Logo nos primeiros minutos de voo, começou uma turbulência. Sem entender o que estava acontecendo, Mana sentiu muito medo. Mas decidiu entoar o cântico do tucano, animal sábio que coleta seu alimento no grande bico, voa até uma árvore bem alta e enxerga o “mundo” de lá de cima, com alimento suficiente para o tempo que precisar ficar calma e confortavelmente em seu galho observando a vida. Foi assim que Mana decidiu cantar a música no avião, cujas palavras se assemelhavam com os seguintes sons: “Tote chequê anereê, Tote cheque anereê”, em voz alta, “mas não muito alta, pra não amolar”, segundo ele. Confiante de que era um verdadeiro tucano naquele momento, adormeceu. Quando acordou o avião já estava encostado em terra firme, no aeroporto de São Paulo. Depois dessa história, fica a pergunta: você ainda duvida do poder da fé?

Bom, encerro os relatos dos Guerreiros sem Armas com uma entrevista um pouco diferente. Não seria justo entrevistar uma ou duas pessoas para contar um pouco mais sobre esta experiência. Assim, me despeço de você, querido e curioso leitor, contaminada pelo espírito de comunidade disparado ainda mais durante o GSA. Para vocês, uma entrevista coletiva.

Não Só o Gato: Em geral, como você avalia a experiência do GSA?
Clara Seguro (no momento, só “se habita”, mas logo vai morar em Santos) : O GSA tem um grande poder de realmente materializar coisas. Acredito que é isso que me atrai no programa, pude viver isso, tive que me esvaziar de outras experiências para viver isso completamente.

Lucas Harada (mora em São Paulo): Foi um experiência totalmente diferente de tudo que eu já vivi! Senti algo muito verdadeiro dentro do GSA, um das reflexões mais profundas que eu já tive sobre o meu verdadeiro propósito! Então eu avalio como uma experiência maravilhosa e muito desafiadora!

NSG: Como você pretende utilizar a experiência no seu dia a dia?

Adriane Morais (mora em Manaus): Na própria construção de cada dia! De forma mais positiva, agregadora, com o olhar apreciativo, a presença nas situações mesmo que banais. O fazer “agora, já”

Lucas Harada: Primeiramente eu pretendo levar uma das coisas que mais me marcou no GSA, que foram as conversas verdadeiras que tivemos com pessoas que conhecemos há um mês. Quero levar isso pra minha família e para os meus amigos. E quero trazer a filosofia Elos para o meu trabalho, trazer a essência e real propósito de cada um aqui para juntos tornarmos o lugar o sonho de todos.

O que mais te marcou nestes dias?

Mariana Nassu (mora em Campinas): De tantas coisas que me marcaram, acho que o principal foi a pergunta  “qual é o seu sonho?”. Parece besta, mas eu nunca tinha parado pra pensar nisso de verdade. Quando levei essa pergunta a sério, durante o programa, entrei em desespero, perdi o chão. Ainda não tenho a resposta, mas estou procurando e sugiro fortemente que todos se façam essa pergunta ao menos uma vez na vida.

Adriane Morais: Os brilhos nos olhos de cada guerreiro, de cada comunitário envolvido no sonho, o sorriso de cada guerreiro q eu observava de longe e a vontade de mudança de todos q conheci guerreiro, comunitário, todos.

NSG: De tudo, o que fica do GSA?

Lucas Harada: Fica para o resto da minha vida tudo o que vivi, da forma que vivi! Nunca esquecerei esse momento, o mais incrível que tive na minha vida. Difícil dizer o que fica, são muitas coisas! Mas o que levo no coração são toas as pessoas maravilhosas que conheci!

Mariana Nassu: Fica a pergunta “qual é seu sonho?”; ficam as dicas e atividades pra eu copiar e usar nas minhas comunidades; e claro, ficam as lembranças.

Estela Marcondes

Estela Marcondes é Terapeuta Ocupacional, acompanhante terapêutica e encantada pelas "linguagens" do mundo, além da verbal. Algumas vezes pensa que a palavra foi inventada por alguém que estava com preguiça de usar os outros sentidos para dizer como se sentia. Adora LIBRAS, dança, trabalhos manuais, música, observar demonstrações explícitas de carinho e elefantes!

More Posts

Comentários